Todo aspirante à escrita literária, e aqui eu me incluo, tem medo de uma certa figura obscura, de “intelecto especial”, que habita o imaginário toda vez que iniciamos um texto: o escritor. Acreditamos que ele surge do nada, se tranca em um quarto com luz precária, liga o seu computador e produz, numa única noite, todos os versos de uma vida inteira. E nisso acreditamos piamente. Por mais que entendamos a escrita e, principalmente, a escrita criativa, como um trabalho meticuloso de garimpagem e polimento, a figura do escritor-pronto – um ébrio moderno, à meia-luz, segurando um copo de uísque quase vazio – ainda nos assombra.
Sabemos que nenhum texto não nasce pronto, externo, grandioso. Há textos que precisam ser maturados por dias, meses e até anos à fio, trabalhados incessantemente. E, por isso mesmo, a função do escritor é ceifar palavras, retirar os seixos, os cascalhos, até que sobre apenas uma pequena porção de algo que precioso. Nessa colheita infernal de dias e noites em claro, madrugadas penosas ou tarde inteiras trancafiadas na própria mente enquanto uma ideia para um novo projeto se acomoda, tímida, entre os afazeres do cotidiano, é que a escrita se torna única e o seu responsável, um escritor. Mas a imagem turva do escritor-pronto é que atrapalha.
A figura sombria, autossuficiente, que paira nas nossas mentes todas às vezes que iniciamos qualquer novo texto é, na verdade, fruto de uma cultura da exceção. Poucos podem ser esse “ser especial”. Há uma qualidade intelectual que não pode ser medida, mas que é agudamente exaltada e ela não nos pertence – nós, pessoas cotidianas, comuns, corpos marginalizados, sem acesso aos altos privilégios.
Nós, mulheres negras, quando sentamos diante da plataforma escolhida – seja um computador, um bloco de notas ou até a caixa de mensagens de um smartphone – enfrentamos outras tantas barreiras que nos dizem que nós não podemos. O sentimento impulsionado nunca é universal – jamais seremos Joyce ou Shakespeare – e o tom é muito panfletário ou intimista. A validade das nossas produções é vista como de qualidade menor – “o texto é muito bom, mas, mas… não reflete uma discussão atemporal, sabe?”. E aí somos arremessados noutra ponta da dificuldade de escrita que enfrentamos: o racismo que diz, aliás, que grita aos quatro ventos que não somos capacitadas o suficiente para este tipo de tarefa.
Assim, muitas de nós, que enfrentam as mais diferentes formas de limitação impostas pelo racismo diário, e têm que criar estratégias de sobrevivência na selva urbana, precisam lidar com outro monstro ainda mais perigoso: a descrença na própria capacidade intelectual. E em decorrência desse pensamento, surge a insegurança, a baixa autoestima, a desconfiança, a síndrome da impostora, o medo de fazer-se ridícula, o desejo de desistir. Se, por um lado, o discurso hegemônico tenta nos desestimular a continuar escrevendo, por outro, quando ousamos quebrar esse padrão da persona autor somos vistos com desconfiança.
A escrita é algo que parte de nós, o nosso cerne, o material de que somos feitas, da mesma forma que a nossa carne, o sangue, a estrutura óssea são intrínsecos ao organismo. Escrever é como respirar: um ato involuntário e necessário para a sobrevivência. E por isso, negar a potência da nossa escrita é o mesmo que rasurar a nossa própria existência. Cada palavra que cravamos tem a textura das nossas dores e insubmissões, das reticências que a vida nos deu e que nunca acatamos, dos sorrisos furtivos cada vez que contornamos um verso e o transformamos em nós mesmas.
A fonte líquida das nossas experiências não pode ser vista, dentro da literatura que escrevemos, como motivo para diminuí-la e transformá-la em uma experiência limitada a um determinado grupo, muito pelo contrário. As nossas vivências são o material da nossa escrita e nelas compomos outras realidades, respeitando as alteridades presentes e revelando sujeitos que estiveram à margem das produções culturais e artísticas. Portanto, quando invertemos o jogo da escrita literária a partir do nosso ponto de existência, estamos fazendo uma verdadeira revolução na persona escritor: essa tal figura abstrata que escreve livros enigmáticos no isolamento de um quarto e sala, divorciado e com três filhos adolescentes que mal se falam é descartada. E no local dela é revelada a jovem suburbana que, dentro do ônibus, indo para o trabalho, sente que o olhar do mundo é melancólico e escreve alguns versos, antes que esqueça, para ver depois quando tiver um tempo; ou da professora de história que chega cansada de mais um dia de aulas com seus enérgicos alunos de treze anos e anota um pensamento; ou ainda, com a estudante universitária pobre, que tem pouco dinheiro para xerox e para o lanche, e identifica como os discursos racistas a afastam da faculdade.
Mulheres negras que chegam em casa e precisam dar conta de uma família e um lar, ou que demandam de outras mulheres algumas formas de afeto. Ser escritora é romper com todas as lógicas internalizadas sobre a figura do autor que temos na nossa memória e lutar contra nós mesmas e a nossa crença enraizada de que esse lugar não é nosso. Assim, finalizo essa reflexão lembrando de uma figura potente na literatura de mulheres negras no Brasil e que, para mim, é exatamente alguém que rompeu com essa imagem do escritor como ele se constitui: Carolina Maria de Jesus. Uma mulher preta, favelada, mãe solo, com pouca instrução e que tinha total certeza daquilo que era: escritora.
Assim, todas as vezes que tenho me envergonho de dizer que eu escrevo (ou que sou poeta, contista e futura dramaturga), eu me forço a lembrar de como Carolina era uma mulher incrível e não deixaria que ninguém jamais dissesse que ela não era aquilo que a fazia existir. Ela não ouvia desaforos e sabia que era escritora sim, senhora.
Imagem destacada – Blogueiras Negras