Nós, mulheres negras e ainda militantes, sabemos que não é pouco comum a sensação de “não-lugar” que sentimos em nossas vidas, nos espaços que frequentamos e convivemos, tanto fora como dentro dos movimentos sociais. E a gente fica percorrendo vários espaços diferentes sem sermos totalmente contemplada neles.
Comigo, na minha condição de mulher negra bissexual, o buraco é mais embaixo. Até porque, enquanto bissexual eu já sou quase que totalmente invisível no movimento feminista, no movimento LGBT, nas políticas públicas e na sociedade num modo geral. E se bissexuais já são invisíveis em vários espaços e não tem suas pautas contempladas, a mulher negra bissexual é muito mais invisibilizada. Pois, se não temos ainda o reconhecimento de nossas pautas enquanto bisexuais, temos menos ainda reconhecimento de pautas bissexuais com recorte de gênero e raça. E pelo andar da carruagem, parece que além de sofrido e desgastante, o trabalho vai ser bem demorado. Falando em visibilidade/invisibilidade, dia 23 de Setembro é Dia da Visibilidade Bissexual e o movimento feminista e LGBT pouco ou nada atentou-se a isso. Parece que ser bissexual é não precisar muito de força e visibilidade política e esses movimentos nem imaginam o quanto eles são bifóbicos pensando assim, mesmo que inconscientemente.
Antes de iniciar o ponto onde quero chegar, acho necessário falar de alguns aspectos importantes acerca da bifobia, pois muita gente, inclusive feministas (muitas feministas!), consideram que a bifobia não é uma opressão, ou que ela não existe.
Bissexuais sofrem opressões específicas por serem bissexuais. Opressões que nos causam problemas de saúde – como transtornos psicológicos e alimentares. Opressões pela fetichização machista acerca da bissexualidade feminina. Temos nossa identidade negada por muitos psicólogos e psiquiatras que fazem-nos acreditar que somos “homossexuais enrustidos” (isso relaciona-se com os transtornos psicológicos e alimentares. Nossa identidade é negada, então muitos de nós acabamos sofrendo distúrbios por tentarmos negar a nos mesmos nossa identidade ou por ter que escondê-la). Sofremos o estigma de sermos considerados vetores de DST, indecisas, promíscuas, de ter uma sexualidade desonesta – o que aumenta o ciúme e a violência doméstica tanto em relação héteroafetiva, como homoafetiva. Sofremos com a fiscalização da nossa sexualidade até no movimento feminista, chacotas dentro do movimento LGBT, insegurança na hora de assumirmos nossa sexualidade para es parceires, e não temos nossa vivência contemplada em seminários, eventos e coletivos que dizem ser sobre “mulheres lésbicas e bissexuais”. *
Nós, mulheres negras bissexuais temos nossos corpos hipersexualizados tanto por sermos negras como por sermos bissexuais. Eu demorei 20 anos para me reconhecer como negra. Tenho a pele clara, fruto da miscigenação, o que faz com que eu sofra menos racismo que negras de pele escura, mas me faz ser considerada a “mulata exportação”, a “morena sensual”, uma mistura de misoginia e racismo, que fetichiza nossos corpos desde o início da colonização europeia até hoje. Somos as preferidas do mercado da prostituição, por termos a pele mais clara e o estigma de mulher boa de cama.
Agora, ser negra bissexual faz com que toda essa hipersexualização cresça num grau assustador que une bifobia e racismo, e nos deixa até confusas em distinguir até onde é bifobia e até onde é racismo. Estas são opressões ligadas em nossas vidas. Elas não se separam.
Quando eu tinha 16 anos, descobri que além de gostar de meninos, eu gostava também de meninas (Ressalto aqui que nem toda bissexual sente atração sexual/afetiva por homens e mulheres. Ser bissexual é sentir atração afetiva/sexual por mais de um gênero, não necessariamente pelo masculino e pelo feminino, existe diversas bissexualidades, a minha é apenas uma delas, e eu me considero bissexual por gostar de mais de um gênero, incluindo homens (cis e trans), mulheres (cis e trans), pessoas não- binárias e travestis). E meus desejos e identidades mudaram muito a partir daí. A primeira menina que eu fiquei é negra. E nós nos descobrimos juntas. Era uma amizade intensa, que seguiu numa paixão tão intensa quanto. Essa relação não durou mais que duas semanas. Mas a minha descoberta foi fundamental, principalmente por ter sido ao lado de alguém que eu sempre confiei e me identifiquei.
Passando essa relação, eu comecei a sair com o grupinho “gay” da minha turma da escola, eu estava no segundo ano do ensino médio. Naquela época (2010) , nós, LGBTs da zona leste, tínhamos alguns points para socializarmos, nos relacionarmos e tirar um lazer na região: atrás do Shopping Metrô Tatuapé, incluindo os botecos da redondeza e a Praça Sílvio Romero. E nos rolês, tinham meninas que gostavam de meninas… Sempre tinha meninas ficando uma com a outra. Eu nunca era uma delas. Meus amigos zombavam de mim. Diziam que com aquela aparência eu não ia conseguir ficar com nenhuma menina mesmo. Eu passei a alisar o cabelo nos dias de ir pro rolê, mas meu cabelo nunca gostou de alisamento, sempre rebelde, a chapinha ia saindo conforme eu ia suando e ele ficava cheio, “armado”. O apelido mais comum era Maria Bethânia.
Foi um impacto pra mim aquela situação, pois eu nunca tinha sofrido tamanha rejeição dos meninos. Os meninos, raramente queriam relacionamento sério comigo, mas sempre tinha um ou mais de um interessado em ficar comigo, em dar uns beijos, em ir pra cama. Com as meninas, a priori foi diferente, pois nem pra sexo elas me queriam. E aquilo me deixava numa baixo auto-estima imensurável. Eu era bissexual. Mas eu era uma bissexual muito diferente daquelas que andavam nos grupinhos descolados. Eu estava no meio delas, mas não era como elas e muitos menos ficava com elas. O não-lugar enquanto mulher negra bissexual… ele pode não ter começado aí, mas que esse foi um momento crucial da minha vida pra percepção desse não-lugar, aaah foi. Eu estudava em escola pública, meus amigos eram ht/gays/les/bi negres, branques, asiáticos… mas todos se maquiavam, deixavam seus cabelos alisados de acordo com o padrão eurocêntrico numa aparente naturalidade, da qual eu não tinha. Eu na minha solidão profunda cercada de gente, de “amigues”… numa contradição que doía na alma. Foi a época mais triste da minha vida. Eu me sentia rejeitada. Feia. Diferente.
Eu pensava em suicídio. Eu tinha um blog que quase todos os posts eram de poesias e textos depressivos que eu escrevia. E mal imaginava que isso tivesse relação com a minha negritude e com a minha bissexualidade. Eu nem sabia que eu era negra. E internalizei bifobia achando que a maioria das pessoas que se identificavam como bissexuais era “por modinha”, afinal como podia se preocupar tanto com aparência?
O que eu pouco percebia, é que até então os homens também tinham marcadores e padrões de beleza nas suas escolhas por mulheres. A diferença é que pro sexo eles me queriam. Mas pro relacionamento sério, não.
Demorou um tempão pra eu recuperar minha autoestima, gostar da minha aparência, dos meus cabelos, me reconhecer como negra e entender que eu sofria bifobia também.
Demorou anos. A perspectiva crítica, o olhar crítico acerca das relações de gênero, de raça, de sexualidade, o contato com os movimentos sociais em espaços físicos e virtuais, a compreensão das opressões que eu sofro e dos grupos do qual eu pertenço tudo foi ficando mais nítido com o passar dos anos, até eu chegar até aqui.
Hoje, estou ativa em vários movimentos, perpasso pelos movimentos culturais da periferia na minha relação com a literatura marginal, com os saraus, com o hip-hop e o funk, pelo movimento negro, pelo movimento feminista e pelo movimento LGBT. Posso dizer com toda certeza que continuo com a sensação dolorosa, frustrante de que ainda estou em um não-lugar. Nenhum destes contempla, discute, visibiliza ou tem de forma organizada mulheres bissexuais negras.
Fico feliz por ter encontrado o movimento bissexual, mesmo que pouco organizado aqui no Brasil. Ele ao menos existe! E lá me concentro em pautas que pra mim são primordiais enquanto bissexual, discutimos bifobia, bissexualidade, nossas estatísticas, as violências que sofremos, formas de nos fortalecermos… mas ele é majoritariamente branco com uma ou outra pessoa negra bissexual ou indígena ou asiática, mas muito poucas. Num modo geral, são pessoas brancas de classe média, que tiveram vivências totalmente diferentes das minhas, não passaram nem passam pelas mesmas questões raciais, não tem a necessidade de se unir enquanto negre e bissexual pra travar uma luta específica na sociedade: a luta contra a bifobia e o racismo. E claro, contra o machismo que nós mulheres sofremos.
Por outro lado, se existem alguns espaços/coletivos de mulheres lésbicas e bissexuais negras, pouco ou nada vejo a discussão sobre bissexualidade, sobre bifobia, sobre as pautas específicas das negras bissexuais.
Ser lésbicas e ser bissexual são questões diferentes. Cada uma tem suas especificidades, suas necessidades, sua discussão acerca da identidade e das opressões sofridas por cada um dos grupos. Ser lésbica não é o mesmo que ser bissexual. Nós podemos nos unir no movimento, nos coletivos sim, desde que as pessoas não apaguem as bissexuais achando que se discutir lesbianidade, lesbofobia e resistência lésbica vai contemplar mulheres bissexuais porque não vai. A nossa invisibilidade é grande, nossas pautas são muitas, nossa bifobia internalizada é enorme.
Mas eu sigo em frente, sem desistir e tentando unir forças. Acredito que seja fundamental e compromisso meu e de outras militantes bissexuais negras e que estejam na disposição de levar esse corre adiante, que comecemos a discutir bissexualidade e negritude, que a gente fortaleça e provoque meios de mover essa luta, pra empoderar e dar coragem às bissexuais negras, para ajudá-las na superação das violências do cotidiano, no fortalecimento da sua autoestima, da sua segurança, da sua saúde, da sua identidade e da sua dignidade enquanto ser humano que não deve ter nenhum direito a menos.
Nós, mulheres bissexuais negras existimos e resistimos.