Tenho assistido muitos programas de culinária ultimamente. E, um texto que considero referência nessa relação entre mulheres negras e a cozinha é ‘A Tia Nastácia e o pé na cozinha’ da Larissa Januário:
Dizer ter o pé na cozinha traveste de lúdico um preconceito sócio racial que coloca todas nós, mulheres negras, na área de serviço. Não por opção, mas por condenação. É tão somente pela herança maldita da escravidão.
E, desse mesmo jeito lúdico, todas nascemos com o estigma de Tias Nastácias. A quituteira de mão cheia do Sítio do Pica-Pau Amarelo que fazia bolinho de chuva, lambari, frango assado… Mas quem assina e estampa desde sempre as capas de todos os livros de receitas é a sinhá, Dona Benta, uma simpática e alva vovó.
Historicamente, a cozinha é um espaço destinado a mulher negra, seja a mucama, a empregada doméstica, a cozinheira, a diarista, a babá. Sempre é próximo a cozinha que está localizada a dependência de empregada anunciada nos empreendimentos imobiliários. Porém, como bem assinalado no texto de Larissa, elas podem até ganhar alguns elogios, mas não significa que recebam reconhecimento por esse trabalho.
No espaço da televisão é difícil ver mulheres negras como protagonistas. Apresentadoras de telejornais ou programas de entretenimento, heroínas de novela ou especialistas convidadas a opinarem sobre algum assunto são, em sua maioria brancas, com raras exceções que todas sabemos citar de cor: Glória Maria, Zileide Silva, Camila Pitanga e Taís Araújo. Há outros textos nesse blog sobre a relação das mulheres negras com a televisão, por isso nesse texto quero focar nos programas de culinária.
Atualmente, os programas de culinária não são mais tão populares. Há mais homens brancos cozinhando na televisão do que mulheres. Porém, basta uma olhada no programa ‘Mais Você’ de Ana Maria Braga para ver na área da cozinha mulheres negras e mestiças auxiliando no preparo dos pratos. Sempre caladas, apenas sorrindo timidamente em alguns momentos. Quase invisíveis se a câmera não insistisse em filmá-las no mesmo plano que a apresentadora loira, que raramente cita seus nomes. Não interessa mostrar para a audiência quem são essas mulheres.
É fato que as mulheres negras sempre foram escondidas nas cozinhas. Não deveriam sair de seu lugar, não deveriam aparecer em público, nem falar. E, deveriam estar sempre gratas por receber abrigo e comida. Uma situação vivida todos os dias em nosso país onde os elevadores de serviço geralmente levam até a porta da cozinha. Luiza Bairros, no texto ‘Nossos feminismos revisitados’, descreve a atuação de uma mulher negra num programa clássico de culinária e como são marcadas algumas dessas relações de racismo e submissão:
Certa vez em Salvador, Bahia, vi na televisão um quadro sobre culinána. Era um programa matinal dingido ao público feminino onde se demonstrava como preparar um prato do qual já nem lembro. Naquele momento, o que prendia minha atenção estava atrás da imagem imediatamente visível na tela de TV. O cenáno era uma cozinha e o personagem principal uma apresentadora que não parava de dar instruções e conselhos. Em contraposição, uma jovem negra participava da cena no mais completo mutismo.
Naquele programa, o estereótipo que nos associa a boa cozinheira foi redefinido pela redução da mulher negra ao papel de coadjuvante, mesmo no limitado espaço imposto pelo racismo. Para mim, entretanto, tão poderosa quanto o silêncio era nossa outra fala, transmitida pela pele negra e realçada pelo penteado de tranças da ajudante. Uma imagem posta em nossos própnos termos, desligada das representações de submissão atribuídas a nós, mulheres e homens negros. Se, por um lado, os produtores de TV acham que não possuimos a autoridade e segurança necessánas para ensinar — até mesmo o que supostamente fazemos melhor — por outro, é evidente que o racismo ja não pode mais ser praticado sem contestação, sem que de algum modo emerjam os confradiscursos que (re)criamos nas duas últimas décadas.
Os significados embutidos na cena não param por aí. O papel desempenhado pela apresentadora — branca — era superior apenas na aparência, pois ela estava restrita ao espaço geralmente desvalonzado da atividade doméstica. Logo, sua autondade só pode evidenciar-se quando contraposta ao papel secundário da ajudante negra.
Está evidente que essa imagem da mulher negra como ajudante, nunca protagonista, não se modificou nas últimas décadas. Portanto, foi uma surpresa encontrar entre a programação da TV a cabo a chef inglesa Lorraine Pascal. Entre os programas que assisti, Lorraine não faz ligação entre a comida e heranças africanas ou mesmo entre a comida da comunidade negra inglesa — que imagino, como em tantos lugares, deve ter características próprias, porque é muito comum que as minorias desenvolvam culturas paralelas àquela majoritariamente branca. Lorraine gosta muito de preparar sobremesas, bolos e tortas.
infelizmente, nas minhas pesquisas, Lorraine Pascal foi a única negra, apresentadora de programa de culinária que encontrei. Mais uma exceção para citarmos de cor. Interessante notar, que diferentemente dos programas de culinária brasileiros, os programas de culinária estrangeiros não costumam ter ajudantes. Chefs e apresentadores estrangeiros costumam aparecer sozinhos, fazendo tudo, desde cortar legumes até ficar de olho no tempo de cozimento. Mesmo tendo pouco tempo para o preparo de alimentos, os programas de culinária brasileiros parecem insistir na histórica representação da relação entre cozinha e a ajudante negra.
Modificar a representação da mulher negra na televisão, retratando-a com pluralidade e de forma positiva, é um importante passo para a construção da identidade da mulher negra na sociedade. Especialmente ao retirá-la dos estereótipos de cozinheira e empregada doméstica, tão presentes na mídia televisiva. Ressignificar a relação das mulheres negras com a cozinha, desde o resgate da culinária de raízes africanas, passando pela valorização do trabalho de cozinheiras populares, até a divulgação do trabalho de chefs negras como Lorraine Pascal, também são ações que contribuem no combate ao nosso racismo invisível e diário.