Marielle Franco era uma jovem negra, além e acima de tudo. Além de ativista feminista, além de lésbica e mulher que lutava pelos direitos humanos e de ser a quinta vereadora mais votada no Rio em 2016. Começo esse texto afirmando que Marielle Franco era uma jovem negra além e acima de tudo, porque é preciso vislumbrar que ela foi mais uma das centenas de casos de uma juventude negra que corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios no Brasil. De acordo com informações do Atlas 2017, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças.
De acordo com esse mesmo documento, em 2017, de 66 vítimas de homicídios em seis meses, 48 são negros, quatro são brancos e, em 14 casos, a cor da pele não foi informada. Do total de 53 vítimas cuja idade foi informada, 60% têm entre 21 e 29 anos. Marielle Franco, uma jovem vereadora negra, entrou nessa estatística.
Não há nenhuma apuração oficial, mas são muitas especulações distorcidas que repercutem nas mídias sobre o motivo da execução de Marielle Franco. Especulam que serviu de bode expiatório para criar uma onda de terror no Rio de Janeiro e convencer a população da urgência de uma intervenção militar. E isso ocorreu de fato, logo após a execução dela. Mas se a execução dela serviu de bode expiatório para impor uma intervenção militar no Rio de Janeiro, porque esse corpo teve mais uma vez que ser um corpo negro, como foi o de Malcom X e Martin Luther King Jr.? Os meios de comunicação, os partidos políticos e as bandeiras levantadas em atos de rua estão negligenciando e silenciando a cor desse corpo, que mais uma vez, como foi o de Claúdia Ferreira, o de Amarildo Souza e do Rafael Braga são corpos negros. Tanto nos atos de rua no estado do Rio de Janeiro, quanto nos atos de rua no estado do Ceará que marcharam em protesto a execução da vereadora Marielle Franco a bandeira “Chega de racismo” e “Parem de matar os corpos negros”, que Marielle Franco levantava com mais vigor, não foi erguida nesses atos de rua. Inclusive o partido que ela militava e era vereadora, se recusou a erguer a bandeira “Chega de racismo”.
De fato, a criminalização das favelas que são habitadas em sua maioria pela população negra e que ocorre pelas mãos do Estado através do fornecimento de armas e drogas nesses territórios alimentando o tráfico e os conflitos armados entre facções é forma mais letal do genocídio do povo negro. É preciso criminalizar as vidas negras para justificar os assassinatos em massa desses corpos negros. Entretanto, um dos grandes problemas é justamente o fato de que a repercussão nas ruas do caso de Marielle Franco evoque somente que “vidas faveladas importam”, destacando a causa da morte como a “criminalização das favelas” e um aumento da violência policial no Rio de Janeiro sem tirarem a carta mais preciosa do baralho do bolso: “a cor da pele dos favelados”!. A questão é que esses discursos adulteram a pauta racial falando apenas de vidas faveladas/pobres. Esses discursos de vidas faveladas/pobres, além de banalizar a incomensurabilidade da tragédia do racismo no Brasil, serve para que a lousa histórica do Brasil escravagista e racista seja esquecida e apagada, sem lidar de fato com as estruturas de desigualdade racial e privilégio branco que estão por trás e no centro do real motivo dos casos de homicídios e assassinatos desses corpos, que são negros.
Exposto isso, penso que a mudez da questão racial na repercussão do caso Marielle Franco constitui um chamado para aprofundarmos o porque dessa mudez. E para que continuemos aprofundando o entendimento da “cegueira diante das raças” e da construção do racial no Brasil e suas relações com a hegemonia e com os complexos ideológicos. Afinal, quem se recusa a levantar a bandeira racial? Quem está no megafone da rua? Quem está comandando os atos de rua e os partidos políticos de esquerda? Porque recusam a pauta/causa racial dessa execução? O que temem?
Colocada a mudez da causa racial na repercussão no Brasil da execução de Marielle Franco e dada a inexistência ainda da apuração da causa da morte dela, não seria exagero contrapô-la com os casos de enforcamentos em árvores no sul dos EUA. Porque esses corpos nos EUA, como no Brasil, também eram negros e os enforcamentos ocorriam sem “motivos legais” nenhum e sem apuração oficial nenhuma das causas desses assassinatos. O assassinato de Marielle Franco pode ser comparado aos enforcamentos de negros em árvores no sul dos EUA, porque esses enforcamentos eram motivados por ódio e medo que se transformavam em boatos de pessoas brancas que sentiam seu poder ameaçado. Esses enforcamentos não tinha nenhum motivo de causa legal, assim como ocorreram com os casos de Marielle Franco, Rafael Braga, Cláudia Silva e Amarildo de Souza. O assassinato de Marielle Franco pode ser comparado aos enforcamentos de negros em árvores no sul dos EUA porque quem estava no poder naquele momento nos EUA e agora no Brasil eram e são WHITE PEOPLE! São essas pessoas que lideram as pautas, comandam os discursos e dizem qual a bandeira que deve ser erguida. Bandeiras de favelados, bandeiras de feministas e bandeiras partidárias são erguidas, menos a “bandeira racial”.
Uso essa analogia para ilustrar e evidenciar que é impossível falar dos assassinatos de corpos negros sem tocar diretamente na “ferida branca”. Não há como existir tantos corpos negros assassinados sem que não tenha “um grande monstro branco” nas engrenagens dessa Máquina de matar corpos. Afinal, o que as taxas de genocídio que sempre tem assombrado as vidas negras na diáspora tem a ver com a branquidade? O genocídio do povo negro na diáspora tem a ver, também, com a branquitude, porque a branquitude é uma maneira dominante de estar no mundo, é um posicionamento confortável de pessoas brancas que se colocam alheias ao racismo. A branquitude, nas palavras de Wekker (2016) se baseia na “inocência branca”, porque ser inocente encapsula e legitima a maneira dominante em que os brancos agem e pensam a si mesmos, como sendo pessoas justas, éticas e não-racistas. A “inocência branca” faz alusão ao estado de ser que é invocado na religião cristã que tem Jesus como o ícone inocente. Então, ser uma pessoa inocente é não trair os outros; é compartilhar o pouco que se tem; é não ser violento e nem cometer erros e é ser o amor encarnado. Por isso a “inocência branca” permite a posição segura de ter uma licença para ações racistas e ainda dizer não que não é racista. Mas o fato é que, ninguém coloniza/mata por mais de 400 anos inocentemente. O genocídio do povo negro na diáspora tem a ver com a branquitude porque tem a ver com o fato dessas pessoas brancas não quererem abrir mão dos seus privilégios que são o seu grande poder e esse é um de seus maiores luxos, o poder de poder: poder saber, poder falar, poder discursar, poder escrever, poder transitar e mover bandeiras, poder definir o que o Outro pode. O genocídio do povo negro na diáspora tem a ver com a branquitude porque a branquitude tem a ver com um eu branco que se senti um ser superior, trabalhador e cheio de direitos, inclusive o de rejeitar e negligenciar a causa racial e se salvaguardar com o discurso de não-conhecer, porque não-conhecer desautoriza a afirmação do racismo.
A branquitude transvestida de “inocência branca” continua roubando a “cena e os espaços”, literalmente e figurativamente, levantando suas bandeiras de feminismos e classismos e “esquecendo”, para usar de ironia, a bandeira racial. E é através dessa “inocência branca” que a branquitude age e continua nos matando. Quando dizem “não-saber” e negarem entender o que é o racismo continuam nos matando e permitindo que nos matem, quando silenciam negras na academia, quando deixam de assinar a carteira da empregada doméstica, quando negam nossa presença na política, quando chamam as crianças negras de “exóticas”, quando te confundem com babá na rua, quando o segurança nos segue no shopping. Porque são muitas as formas que a branquitude nos mata. São muitas as formas que a branquitude permite que sigam nos matando: com balas achadas, com a desumanização cotidiana dos nossos corpos, com a sexualização dos nossos corpos. Aos corpos negros tudo é permitido: serem arrastados ensanguentados pela polícia racista, apedrejados até a morte apenas por manifestarem os seus credos, amarrados em postes para servir de exemplo aos subversivos nas cidades brasileiras. São muitas as formas que estamos morrendo pouco a pouco todos os dias. A morte para nós não passa de um exemplo superlativo do que é viver como o “Outro”. Somos o “Outro”! E a Branquitude é esse monstro que age nas engrenagens dessa máquina de fabricar e matar o “Outro”!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Atlas da violência 2017. Ipea e FBSP. Acessar documento em http://www.ipea.gov.br/portal/images/170609_atlas_da_violencia_2017.pdf.
Morrison, Tony. The Origin of Others. Harvard University Press, 2017.
A mulher negra no Brasil e o amor (Jornal Maioria Falante, n. 17, fevereiro a março de 1990).
Wekker, Glória. White Innocence: Paradoxes of Colonialism and Race. Durham and London: Duke University Press, 2016.