Uma criança se percebe, ser reconhece e se afirma os 2 anos e meio de idade ser apenas uma menina. Vive como uma menina. Aos 4 ela já conhece a misoginia e ódio quando é impedida de ser quem se é, ao mesmo tempo em que vê a mãe ajoelhada limpando casas de mulheres brancas e japonesas, aos 11 já ingressa no mercado formal de trabalho, tenta ser invisível, não fala, passa boa parte do dia com as mãos nos bolsos, para não ser percebida. Aos 12 trabalha em dupla jornada, um emprego formal em uma prefeitura, nos fins de semana é olheira na esquina onde suas semelhantes sobrevivem da prostituição, ao mesmo deve ser a melhor funcionária e a melhor aluna.
Ainda muito jovem, é no sangrar de uma travesti negra executada em sua frente, por um policial, que ela entende que toda mulher sangra, mas nem toda mulher será contemplada com o sagrado. Numa sociedade branca, xenófoba, machista, misógina, patriarcal, capitalista e cissexista, decidimos quem é mais ou menos mulher. Decidimos quem será negociada e destinada morrer, e não morrerá uma vez.
O meu feminismo é construído nas valas onde sociedades modernas são erguidas, onde os corpos das minhas ancestrais foram ocultados e ainda brotam. Meu feminismo tem a fúria de Iansã, a divindade dos ventos e da mudança do Candomblé brasileiro. Meu feminismo tem a dororidade que não é contemplada na sororidade branca e cisgênera. Dororidade, sim, esse fundamento entendido e produzido por Vilma Piedade, mulher negra e cis do Rio de Janeiro.
Este feminismo que aqui apresento tem o aprendizado compartilhado em Barcelona em 1998 com outra da mulher negra e trans criada junto as indígenas da Guiana Francesa, ela me ensina que é preciso estudar o inimigo antes de avançar, que é preciso aprender o que fala o estrangeiro para poder se proteger, para se defender, assim como aprendem as mães que perdem seus filhos para o genocídio do Estado, aprendem a se defender de quem deveria as proteger.
Meu feminismo sangra na alma quando mulheres encarceradas em presídios femininos são abandonadas por suas famílias e os dias de visita são sem filas enquanto, em presídios masculinos, mulheres têm sua identidade negada, negociam de todas as formas suas sobrevivências e se submetem à segregação – a única forma de se manterem invioladas – não no caso de quem estava em uma cela com 99 homens.
Meu feminismo clama por dignidade quando mulheres que passaram pelo sistema prisional anseiam por um trabalho análogo à escravidão; porque o capitalismo opera desta forma: tira e negocia a sua humanidade. Muitas sobrevivem morando nas ruas, muitas têm sua saúde mental e emocional comprometidas, vivem do lixo, ou formam cooperativas como a potente Mara Sobral, negra, mãe e lésbica, que não se submete a normas. Como Verônica Bolina, a mulher trans negra que é exposta torturada pelos agentes do Estado no ato de seu encarceramento, assim como Luana Barbosa, também com passagem pelo sistema prisional, viveu 4 anos como Luan Victor e foi executada pelo Estado na frente do filho, no interior de São Paulo.
Meu feminismo grita com a morte em plena luz do dia da travesti Dandara dos Santos, executada por 16 homens em 2017, no nordeste brasileiro, com os estupros de mulheres de 77 e 101 anos, com a dificuldade de uma mãe em obter documentos para uma criança intersexo.
Meu feminismo grita quando penso na Amazônia em chamas, com mulheres indígenas, ribeirinhas e quilombolas tendo suas terras invadidas, suas vidas dizimadas mais uma vez, diante de uma nação amortizada pela precarização contínua de sua educação e formação.
Meu feminismo não esquece o corpo de Cláudia Silva Ferreira, arrastado por 350 metros por um carro da Polícia Militar, no subúrbio do Rio de Janeiro, assim como não esquece os tiros em Marielle.
Meu feminismo não se sente acolhido no ninguém larga a mão de ninguém – a minha, largaram muito cedo – então, eu aprendi a correr e a ser invisível de inúmeras formas. Meu feminismo decidiu que é preciso ser vanguarda, chegar antes, mas não esquece que é preciso preparar e fazer pactos, para quando este corpo tombar alguém possa prosseguir a luta.
Meu feminismo não esquece o passado, a ancestralidade de escravizadas como Xica Manicongo, Salvador, Bahia, 1591, considerada a primeira mulher não cisgênera, não índigena do Brasil, condenada por se vestir com trajes de uma feiticeira baiana. Meu feminismo também celebra a vida no encontro com feministas negras plurais como Sueli Carneiro e Angela Davis.
Meu feminismo, enquanto ouve o silêncio dos culpados, clama e produz humanidade, clama por um feminismo sem etarismo, sem classismo, sem capacitismo, sem racismo, sem cissexismo e sem normas sobre os afetos e os corpos diversos. Meu feminismo se compromete com uma nova humanidade, uma humanidade mais equânime.
Enquanto aguardo minha humanidade negada, meu feminismo celebra a vida quando sou acolhida na Marcha das Mulheres Negras de São Paulo; quando uma deputada Erica Malunguinho e as em mandatos coletivos, Érika Hilton e Robyoncé Lima, todas negras e não cisgêneras, são eleitas.
Meu feminismo celebra a vida perguntando onde caem as mulheres fortes ou se morrem de pé como grandes árvores: alimentam, protegem e são esquecidas.
Meu feminismo é pela vida digna, pela morte digna de todas as mulheres.
Meu feminismo é para que nunca falte mão para aquela menina, para todas nós, para que os sonhos sejam possíveis. Meu feminismo é aqui e agora.
Texto apresentado em setembro no Festival Feminista na cidade de Essen promovido pela Fundação Rosa Luxemburgo
https://www.feministfutures.de
Imagem destacada: Wangechi Mutu, no Joanna Hall Artwork