“Nada que eu aceite de mim mesma pode ser usada contra mim, para me diminuir. Eu sou quem eu sou, fazendo o que vim fazer, agindo sobre vocês como uma droga ou um cinzel, para que se lembrem do que há de mim em vocês, enquanto descubro vocês em mim” (Audre Lorde, em Olho no Olho: Mulheres Negras, Ódio e Raiva. Irmã Outsider. Autêntica. Tradução Stephanie Borges.)
Hoje é um dia muito especial para as Blogueiras Negras. Há exatamente 12 anos nós realizávamos a nossa Blogagem Coletiva Dia Internacional Pela Eliminação da Discriminação Racial. Nós nascemos rememorando um passado de ódio, de segregação e de morte – o Massacre de Shaperville na África do Sul; E em torno da solidariedade, reunimos as mulheres negras que já escreviam e conformamos a nossa comunidade de autoras.
Audre Lorde, escritora estadunidense, poeta e ativista lésbica nos brinda neste momento peculiar, onde a bússola de um novo tempo aponta para a reconciliação conosco e entre nós. Seu texto mira para caminhos para os quais nós, as feministas negras, ainda temos muito o que discutir: ética, afetos, pulsão de morte, autodestruição e destruição das outras. Segundo, Lorde:
“antes que eu possa escrever sobre a raiva das mulheres negras, preciso escrever sobre a venenosa infiltração de ódio que alimenta essa raiva e sobre a crueldade que é produto do encontro entre os dois”.
Os efeitos do racismo em nós precisam ser debatidos publicamente, e entre nós mesmas. Há um mês, as companheiras do Black Feminist Radicals nos convidaram para um diálogo, que se seguirá, com uma pergunta, no mínimo, intrigante: Is there (really) a black feminist moviment?” [Existe (realmente) um movimento feminista negro?]. No diálogo, africanas, caribenhas, lationamericanas e norte americanas; mulheres trans e cis, com deficiência, lésbicas e heterossexuais, e o que tínhamos em comum: o desejo de discutir qual o ponto de encontro, quais os acordos mínimos (aqui lembrando Ingrid Farias), quais os sensos éticos e sentidos políticos para a conformação de um verdadeiro movimento de mulheres negras feministas?
Algumas vão dizer – e disseram – que o “risco no chão” é a transfobia! Que para nós é incompatível com o feminismo negro; outras a possível existência de barreiras que impeçam o acesso de todas, o capacitismo e o etarismo. Neste dia, com essas mulheres, deu pra entender e sentir que existem organizações variadas de mulheres negras ao redor do mundo, mas que além disso, precisa haver identidades políticas comuns (Andrea Arrecha) para que haja um movimento feminista negro, ou como dizemos no Brasil, um movimento de mulheres negras.
E essas identidades precisam estar enlaçadas para além da dor, mas da luta! Ora, e que ponto de inflexão mais certeiro para se pensar neste dia de hoje, se não, a luta. Claro que a Dororidade (Vilma Piedade) é um elemento central que aproxima as mulheres negras, mas ela não deveria ser a única fibra que compõe o laço entre nós. Para Ameena, por exemplo, as mulheres com deficiência continuam sem estar incluídas no movimento feminista negro – se é que ele existe! E quem sente a dor das mulheres com deficiência? Pois bem, a luta precisa nos unir além da dor, e a luta tem um jeito, um modo, um como: e aí está então o nosso x da questão. Não é qualquer como que nos une.
Nesta conversa, ouvimos Brendane Tynes afirmar que feminismo negro é sobre “agenciar a alegria e o amor entre nós”. Obrigada Brendane, pelo óbvio e difícil.
O exercício do modo como nos unimos em torno da luta é indispensável, e duro também. Lorde sentiu e escreveu pra nós exatamente assim:
Qual outra criatura no mundo além da mulher negra teve que assimilar o conhecimento de tanto ódio em sua sobrevivência e ainda assim, seguir em frente?
Então nos digam, companheiras, como seguir em frente, lutando contra o racismo, com tanto ódio reproduzido entre nós? O que não é mais possível desconversar ou fingir não estar acontecendo? O que não aceitaremos mais entre nós em nome do egóico exercício do “meu feminismo negro e a minha experiência é mais dolorosa que a sua?”
As provocações veem da nossa experiência, mas também das bravas e doces palavras da amada Brendane A. Tynes, nessa conversação amorosamente organizada pela anfitriã Jamiee Swif da Black Women Radicals:
“Quais são os nossos objetivos e o que estamos tentando fazer? Nós estamos tentando ser brancas ou estamos tentando ser livres? E o que a liberdade significa pra nós? Nossas organizações estão fazendo o nosso papel com a nossa comunidade ou estamos lutando por um microfone para falar? Ou estamos escrevendo papers para publicar?“
Perguntas que tem uma variação enorme de possíveis respostas e que provocam em nós, Blogueiras Negras, o desejo de continuar conversando entre nós, sobre quais os caminhos éticos, os laços de alegria e gentileza, o cuidado político e o modo de fazer a luta nos une.
Hoje, dia 21 de março, o movimento de mulheres negras brasileiro lança a 2ª Marcha de Mulheres Negras 2025. Nós seguiremos lutando para que o ódio, a segregação e a morte não sejam mais nossas amigas comuns. E nós propomos a continuidade sobre esse debate, sob a luz de Audre Lorde, nossa inspiração para a liberdade!
A liberdade de ser justas, mesmo diante da violência. De sermos honestas, apesar do roubo e extravio dos nossos bens mais preciosos: a vida e o bem viver.
“Temos a tradição de proximidade, cuidado mútuo e apoio, desde as cortes das rainhas-mãe do Benin, formadas exclusivamente por mulheres, até a Irmandade da Boa Morte, uma comunidade brasileira de senhoras que perdura até hoje (…) Somos fortes e persistentes. Também temos cicatrizes profundas. (….) Sabemos que o poder de matar é menor que o poder de criar, pois ele dá fim em vez de dar início a algo novo”. Audre Lorde