As Mulheres negras pobres tem que resistir e lutar 24h por dia, pois não estão em nenhum desses lugares de privilégios
Sou Antônia Gabriela Pereira de Aráujo, mulher, negra, cearense, mãe solteira, lésbica e cotista do programa de doutorado em antropologia do Museu Nacional. Sou filha de uma mulher negra que trabalhou e ainda trabalha como empregada doméstica e de um homem branco que ficou preso por seis anos por ter assassinado seu próprio amigo em um assalto. Pode ser que muitos e muitas não compreendam as minhas primeiras palavras, e que a qualifiquem como “oportunista” ou “vitimista”. Penso que ainda falta a estas pessoas, talvez, alguns des-privilégios pra que venham a sentir e entender o que estou falando. O que estou querendo dizer é que desde cedo tive que entender que o problema das desigualdades no Brasil é não é só de raça e nem só de classe: as pessoas que estão em situação de extrema vulnerabilidade tem cor e tem classe.
Além de cor e classe, as pessoas desassistidas pelas políticas estatais tem endereço. Cresci num desses endereços que chamam favelas, morros ou quebradas do Ceará. Morei no Pôr do Sol, um dos bairros com maior intensidade de tráfico de drogas da cidade de Fortaleza. Não vou me prolongar neste ponto, mas preciso dizer que está aqui hoje foi e ainda está sendo meu maior Ato de resistência, pois quem nasce na favela já nasce resistindo e tendo que lutar todo dia para se manter vive.
Depois de ter o barraco que morávamos derrubado pelo Estado duas vezes, eu, minha mãe e meus dois irmãos fomos morar numa casa de tijolo com iluminação precária e tendo de pegar água em poço.
A escola mais próxima ficava a duas horas da nossa casa. Eu somente comecei a estudar com 6 anos de idade e quando iniciei os estudos tive que caminhar com minha irmã estas duas horas até a escola, pois não havia dinheiro para passagem. No ensino médio já tinha dinheiro para custear minha passagem e chegar até a escola, já que o subemprego havia chegado precocemente para mim, como chega para muitos pobres e negros do Brasil. Mas o estudo passou para o período noturno e assim passou a ter um plano secundário na minha vida, pois não tinha mais tempo para estudar.
Quando resgato esta parte da minha memória, lembro- me de todas e todos os amigos e amigas que ficaram no Ceará e tiveram uma realidade senão igual, muito parecida com a minha, mas que por imposições de uma sociedade racista, que criminaliza as favelas e todos que vivem nela e que cultua uma cultura machista, os meus companheiros e companheiras estão hoje trabalhando arduamente por um salario mínimo, alguns morreram no tráfico de drogas, outras mulheres são mães solteiras de dois ou até quatro filhos e não conseguem ver nenhuma esperança nos seus caminhos.
Entrei no curso de graduação em Ciências sociais depois de viver muitas cenas de racismo no meu primeiro emprego. Pensei que se não fosse estudando, nunca sairia daquela condição humilhante que sofria há dois anos. Estudei, estudei muito e paguei com o dinheiro da rescisão um curso pré vestibular particular para ter certeza do que estava fazendo.
No caminho descobri que mesmo estando na universidade iria continuar sofrendo racismo e por ter uma saúde mental que estava criticamente em coma, pois é assim que vivem as mulheres negras no Brasil, me deixei cair nas mãos de uma relação extremamente machista e me afundei numa relação opressora e racista. Engravidei e desde aquele momento me dei conta que a causa das opressões não somente tem raça, classe e endereço, mas também tem GÊNERO. Muita violência sexual, física e psicológica e nenhum direito reprodutivo, somente opressões e mais opressões… Resisti, ressurgi e sai mais forte e com mais certeza da minha luta e daquele momento em diante decidi tirar do coma a MULHER NEGRA que estava com a voz engasgada dentro mim, decidi despregar os meus lábios e gritar chega de “RACISMO E DE SEXISMO” e não irei mais me calar enquanto eu estiver viva. Pois estou aqui pela resistência de minhas ancestrais, Vaulice, minha mãe, Zilma , minha vó, as Cláudias, as Dandaras e as Jandiras. Todos as minhas ancestrais negras que lutaram e resistiram a violência sexual, ao estupro, e lutaram como panteras para que hoje eu e minhas companheiras negras chegassem até aqui fortes e cientes de sua missão que é representar um ideal coletivo e não um ideal individualizado.
Eu não represento só a mim, eu trago comigo a luta do povo nordestino, a luta do povo pobre e a luta das mulheres negras e lésbicas.
Tento me tornar a pessoa mais forte e sã que consigo para viver numa sociedade e numa universidade racista e machista para ajudar a efetivar mudanças em direção a um bem maior e a um futuro digno para minha filha e todas as crianças de sua geração. Como doutoranda, cotista, negra, lésbica, feminista e mãe, frequentemente me vejo vivenciando situações de muita opressão e o que faço??? Reajo, reajo e não me calo!! E diante de tanta resistência e reação em um ou outro desses grupos que frequento me define como ignorante, desequilibrada, difícil ou apenas uma pessoa que “age por ódio”.
Outro dia ouvi na universidade de um professor que meritocracia não tem classe, gênero, nem raça. Outro dia ouvi na universidade de um professor que quem é mãe na pós graduação o fez por escolha e por isso devia mesmo se virar sozinha. Outro dia ouvi de uma professora negra que a questão racial já tinha sido superada e o que nos importava agora era a luta pela questão de gênero. O interessante é que este professor nunca precisou pensar na cor da sua pele como um problema, pois é branco, nem no seu “gênero”, pois é homem cis; a professora negra nunca precisou pensar na sua condição social, pois é de classe alta e acredita nunca ter sofrido racismo.
Há uma ideologia sexista e racista que é impregnada em nossas mentes desde muito cedo , desde a educação infantil. Na mente de minha filha de quatro anos, eu, sua tia e sua avó que são mulheres negras, SOMOS os “lobos maus” ou “sacis pererês” das histórias que lhe contaram na escola, pois essa é a única referencia “negra” nos contos que até agora lhe contaram na escola. Outro dia seu amigo da escola havia lhe dito que eu tinha o cabelo muito “cabeludo”, em tom de desprezo, o que a deixou triste e tentando me consolar dizendo que “o meu cabelo iria sim crescer para baixo”. E desde cedo, ela sofre por não querer ser a menina frágil e doce e é reprimida por seus amigos por ter dito que era uma menina forte e que gostava de jogar bola.
Como mulher negra, lésbica, mãe, estudante e militante aprendi que não poderia me dar ao privilégio de levantar apenas a bandeira do movimento negro, nem somente das feministas, nem das lésbicas ou dos pobres. De tudo que já vivi até agora aprendi que não há hierarquias de opressão mas que devemos todos: pobres, homens, mulheres, brancos, amarelos e indígenas nos preocupar e lutar pelo fim de uma sociedade machista, racista e classista que prega sua ideologia se transmutando na sua forma mais simbólica. Quando me diz que eu devo alisar meu cabelo; quando me diz que minha filha tem que ser delicada; quando me diz que não devo “provocar” homem; quando me diz que devo me calar pra não me ferrarem seja na Universidade ou numa mesa de bar.
Não é possível acreditar que uma sociedade que viveu por mais de 350 anos num regime de escravidão tratando negres como coisas, mercadorias e não como pessoas, viva hoje um sistema igualitário em que todos gozam realmente de uma democracia racial. O peso de 350 anos de escravidão terá seus prejuízos ressoando por muitos anos ainda e estes prejuízos pesam sobre nós todos os dias, fisicamente, no corpo negro que é sexualizado, subalternizado e coisificado e, também, psiquicamente.
Os ataques contra os homens e mulheres negras não é somente uma questão de luta da população negra, é também uma questão dos movimentos LGBTT e dos movimentos de classe, já que eu e milhares de outras mulheres e homens negros somos LGBTT. Situações de opressão contra pobres, lésbicas, gays e trans tem que passar a ser uma questão do movimento negro e vice versa. Não devia existir “caixinhas de opressão”.
Ninguém devia achar que tem o privilégio de lutar apenas pela causa das mulheres brancas ou pela causa dos movimentos de classe, ou ainda somente pela causa des negres. Apesar de não precisarem pensar na cor de sua pele todos os dias, nem em sua condição social, nem em seu “gênero”, pessoas brancas cis de classe alta devem começar assumir seus privilégios e serem responsabilizadas por continuarem produzindo tanto machismo, sexismo e racismo.
Mulheres, negres, pobres e LGBTT estejamos na luta assumindo os fronts de maneira interseccional.
É pouco termos dois estudantes negres numa sala de pós graduação com vinte estudantes, quando o Brasil é o segundo país em população negra do mundo, temos que continuar lutando para vermos es negres ocupando 50% das vagas nas universidades. Temos que continuar lutando para que mulheres, pobres e negres façam valer de forma positiva o ditado que criaram para lhe inferiorizar que diz : “A coisa tá preta agora”.
E penso que será ótimo ver a situação ficando preta mesmo, pois “serão es negres construindo uma nova história” (trecho da música “A coisa tá preta agora” do grupo de Rap Quilombo Urbano).
Imagem destacada – reprodução web
Depoimento lido em Assembleia geral de Mobilização das Ciências Humanas – (RJ) em 09 de junho de 2016.