Por Luana Tolentino para as Blogueiras Negras
Me vê pobre, preso ou morto já é cultural
(Racionais Mc’S)
Apesar de morarmos na mesma casa, Dennis, meu irmão mais velho, e eu, dificilmente nos encontramos. Enquanto ele se desdobra entre dois hospitais, tento conciliar a sala de aula com o trabalho de pesquisadora. Nos raros momentos em que estamos juntos, é sempre uma festa! Tenho a impressão de que nos conhecemos de outros carnavais.
Dentre vários assuntos, como não poderia deixar de ser, nossa vida profissional sempre tem espaço durante nossos encontros. Dennis, com toda a sua generosidade, tem ouvidos sempre atentos às muitas histórias que trago da escola em que trabalho. Ao passo que eu me esquivo cada vez que ele relata os casos ocorridos durantes as 12 horas em que passa no hospital. Que ele não saiba: não gosto de ficar ouvindo todas aquelas tragédias típicas de pronto-socorro. Meu espírito é fraco para essas coisas.
Acostumado a lidar com a morte, Dennis muda de feição completamente ao narrar os casos de jovens que vem à óbito durante os seus plantões. Segundo ele, nada o incomoda mais do que ver a vida de rapazes com idade entre 17 e 25 anos serem ceifadas em decorrência de ferimentos provocados por armas de fogo. Não fosse um detalhe, seriam apenas mais alguns casos da violência urbana que acomete o Brasil. De acordo com o meu irmão, a proporção de mortes entre negros é brancos é de 5 X1.
Embora sejam fruto da vivência de quem é enfermeiro em um dos maiores hospitais de Minas Gerais, esses dados não fogem muito das estatísticas oficiais. Em novembro passado, foram divulgados os resultados de uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde. Ficou constatado que, do total de assassinatos registrados no Brasil, 53% têm jovens como vítimas e, destes, mais de 75% são negros e do sexo masculino.
Estes números são capazes de assustar e impressionar a qualquer pessoa que deseje o estabelecimento de um país com o mínimo de justiça social. Infelizmente, é um problema antigo. Ainda no final da década de 1970, momento da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), a denúncia e o combate ao genocídio da juventude negra já era um dos pilares da organização. Desde então, o que se tem visto é a omissão e o descaso por parte dos governos.
A reversão desse quadro é um tanto complexa e não será alcançada do dia para a noite (que tristeza dizer isso!). Demanda investimentos nas áreas da educação, saúde, emprego e segurança pública. Exige também uma mudança na mentalidade da polícia, que tem nos pretos e pardos seu alvo preferido. Além disso, é necessário o envolvimento de profissionais comprometidos com a equidade racial na formulação de políticas públicas. A indicação do Pastor racista-homofóbico Marcos Feliciano para a Comissão dos Direitos Humanos mostra que será necessária uma maior mobilização por parte dos movimentos sociais e de toda a população para que os jovens negros tenham direito a um bem inalienável: a vida.
Contudo, até mesmo medidas aparentemente simples, que poderiam contribuir para a reversão desse quadro perverso, encontram barreiras para a sua implementação.
Em 2011, entrevistei a médica e militante do movimento feminista Fátima Oliveira. Fátima defende a inclusão do quesito cor nos prontuários médicos, uma medida que “possibilita definir de que adoece e morre a população negra, fornecendo elementos importantíssimos de políticas de atenção à contemplação do recorte racial/étnico”. Porém, segunda ela, “o quesito cor ainda é muito incompreendido fora dos meios ativistas da saúde da população negra”. O que era de se esperar no Brasil que, apesar das denúncias e estatísticas que comprovam a maneira perversa como o preconceito e a discriminação racial incidem sobre a maioria população, não se assume como um país racista. Como muitos gostam de dizer, racista é a turma do lado de cima da linha do Equador.
Outro dia o Dennis me confessou emocionado que, mentalmente, costuma fazer uma prece para cada jovem negro que morre durante os seus plantões. Não deve ser fácil ver seus pares sendo mortos e não poder fazer praticamente nada. Definitivamente, não sei como ele suporta. Mas uma coisa é certa: algo precisa ser feito com extrema urgência. Caso contrário, meu irmão ainda terá muitas almas para encomendar.
“Esse post faz parte da BLOGAGEM COLETIVA PELO DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL, uma iniciativa BLOGUEIRAS NEGRAS.”