“Mulheres negras acordam de manhã, olham no espelho, e vêem mulheres negras. Mulheres brancas acordam de manhã, olham no espelho e vêem mulheres. Homens brancos acordam de manhã, olham no espelho e vêem seres humanos.”
Michelle Haimoff
Tenho esse problema crônico de atrasos e já entro meio afobada no elevador pela manhã, ao sair de casa. Aproveitei para me arrumar no espelho quando entra outra mulher, branca, e começa a me perguntar pela minha patroa. Bem, eu sou uma mulher negra e vivo num prédio de classe média. Aliás, eu sou a única pessoa negra moradora do prédio. E desde os meus 12 anos, mais ou menos, me perguntam pela minha patroa. Não me sinto ofendida por ser confundida com uma empregada doméstica, muito pelo contrário. Mas é sempre uma constatação de como sou percebida como alguém que está fora do seu “lugar” pela da cor da minha pele.
Segui para a universidade, onde estou cursando uma especialização em gênero, e o prato do dia era um seminário sobre gênero e religião. Eu, que sou de Iansã e adoro ventanias e uma boa discussão, estava animadíssima. Mas os ventos conservadores já começavam a soprar quando a mesa foi convidada, composta de três mulheres brancas e um homem branco. Uma das professoras era doutora em religião (e foi introduzida como uma das referências nacionais nesses estudos) e @s demais eram orientand@s dela e explanavam sobre suas pesquisas com mulheres de terreiro e mulheres evangélicas. Apresentações bem isoladas, protocolares e esvaziadas politicamente, como ditam a moral e os bons costumes.
Aguardei pacientemente o momento em que o microfone estaria aberto para comentários. Quando chegou a minha vez, me apresentei como negra e feminista e iniciei dizendo que achava muito simbólico uma mesa de pessoas brancas falando sobre gênero e religião e sobre as mulheres negras de terreiro. Não pude continuar pois fui interrompida pela professora que queria passar o microfone adiante – e foi preciso insistir para que ela me permitisse falar. Todas as falas anteriores haviam sido respeitadas e achei mais simbólico ainda que a primeira mulher negra a abrir a boca durante toda a manhã tivesse que lutar para se fazer ouvir.
Minha intervenção foi no sentido de problematizar essa ausência da representatividade negra na universidade. De relacionar esse espaço e essa produção de conhecimentos com a herança eurocêntrica, patriarcal e branca de pensamento. De questionar o conservadorismo e o elitismo de uma universidade que reconhece títulos acadêmicos como medidas de saber, mas despreza a sabedoria de um mestre griô (que talvez sirva como objeto de estudo). De perguntar por que uma mulher branca se sente legitimada a dizer o que pensam e sentem as mulheres negras. De perguntar pela pluralidade das religiões. Até reafirmei que isso não era uma questão pessoal e sim política – e desejei muito axé pra mesa. Mas acho que se eu tivesse xingado a mãe de todo mundo, teria ofendido menos.
Foi com muita hostilidade que cada componente da mesa se colocou. Argumentos que variavam do “não há negros estudando religiões negras”; “não existe esse pluralismo todo, a maioria das pessoas são cristãs” ou “são as estatísticas” ao já clássico mimimi do homem oprimido pelas mulheres. Uma ainda provocou dizendo que eu não havia perguntado a ninguém da mesa se el@s eram negr@s (apesar das claríssimas peles, sem exceção). Mas o que machucou mesmo foi a violência que a professora (no topo da hierarquia de poder) usou para me recolocar no meu “lugar”. Eu sei que não é inédito, não é exclusividade minha. É cotidiano e já um velho conhecido. Mas, acreditem, o racismo nunca dói menos.
No intervalo do almoço fui encontrar minha mãe e – como não me envergonho nem das minhas lágrimas, nem dos meus fluidos e corpo – chorei copiosamente narrando o episódio. O olhar triste da minha mãe, que é branca, foi o mesmo olhar de quando ela conta que na minha primeira escola, aos cinco anos, fui impedida de interpretar Jesus no teatro porque a diretora achou melhor colocar uma criança menos “queimadinha”. A educação, esse instrumento poderoso de nos manter nos nossos “lugares”. Em todas as instituições de ensino que atravessei na vida, fui discriminada pela cor da minha pele. Fui uma criança tímida, a única menina negra num colégio particular e católico. Lembro bem de uma professora de ensino religioso que me colocou na frente da turma para mostrar meus bonitos dentes, fortes como os de um cavalo, os dentes das pessoas negras. Eu tinha muita vergonha de sorrir nessa época. O racismo nunca dói menos.
Teimosa que sou quanto à ocupação de espaços, voltei para a continuação do seminário à tarde. O conservadorismo não decepcionou e dessa vez a apresentação da mesma professora era sobre um paralelo entre os posicionamentos do pastor Silas Malafaia e do deputado Jean Wyllys. Ela defendeu que o pastor tinha uma concepção de Estado Laico mais plural e democrática que o deputado do PSOL. E embasada em Marx, hein? Tudo é manipulável nessa vida, gente. Houve um esforço da turma para trazer uma perspectiva das relações de poder e a justificativa da mesa foi de que as pessoas têm o direito de ser evangélicas. Até onde eu saiba, nunca foi uma pauta dos movimentos LGBT proibir as pessoas de serem evangélicas, mas enfim. Quando lembrei a ela que no Congresso não existem bancadas gays ou lésbicas ou trans ou negras ou indígenas etc., recebi a seguinte pergunta:
“– Então por que vocês não fazem as bancadas de vocês?”
Taí uma boa pergunta. Por que será que os movimentos sociais não pensaram antes na necessidade de representatividade nos espaços de poder e tomadas de decisão? Sabe Deus.
É um pouco cansativo ser ativista porque esse enfrentamento é diário e a capacidade humana de resignação várias vezes sobrepuja a capacidade de mobilização. Já estava desanimada e solitária quando uma mulher que eu não conhecia pediu para me entregar um bilhete. Textinho curto e carinhoso, dizendo que tinha se tornado minha fã e adorado minhas palavras. Fiquei especialmente comovida pela solidariedade e, principalmente, percebi que muitas mulheres ainda não conseguem assumir o embate escancarado na disputa de forças. Mas todas nós sabemos muito bem o que é racismo e violência e o que é liberdade e justiça. Nós sabemos também que gênero e religião tem tudo a ver com raça. E estamos todas resistindo, de diversas formas.
As duas outras mulheres negras presentes estavam me esperando quando saí da sala, o olhar de reconhecimento que só vemos em nós mesmas e nas nossas irmãs. Fomos caminhando juntas, rotundamente negras, e como no poema da Shirley Campbell, nos negamos rotundamente a negar nossas vozes, nosso sangue e nossa pele. E vamos enegrecer todos os espaços desta bodega de sociedade com muito axé.
Quando você acorda de manhã, quem você vê no espelho?