Este texto é direcionado às mulheres que marcharam e marcham todos os dias: às irmãs, amigas, matriarcas de cor e de amor. Escrito com a força das emoções e da reflexão sobre o momento que se encontram nossas conquistas e desafios.
Marchamos contra o racismo/sexismo
Lembremos que nossas marchas coexistem com as diversas tentativas de rearticulação das velhas forças que vão além dos tiros que tentaram nos conter na Explanada em Brasília. Nesse misto de homenagem e reflexão, chamo as amigas para uma conversa sobre questões bastante conhecidas e sentidas por todas nós: a invisibilidade, a subalternidade, o silenciamento, a perda da autoestima frente à hegemonia branca em versões no masculino, mas também travestidas de feminino.
Proponho que dialoguemos um pouco sobre as conhecidas relações hierárquicas entre mulheres negras brancas, e as situações nas quais elas se reorganizam em meio às relações e os espaços onde se dão as lutas antirracistas atualmente. Para chegar à questão central das reflexões que proponho, relembrarei algumas questões que têm acompanhado a trajetória dos enfrentamentos ao racismo e suas permanências camufladas em alguns segmentos das lutas atuais. Uma de nossas principais questões, principalmente nós, mulheres, é a invisibilidade relacionada a dois princípios ideológicos fundados pelas falanges da elite branca que marcariam profundamente as configurações racistas do país, ou seja, marcaria de forma significativa e drástica, nossas vidas.
Um deles é o embranquecimento, um ideal que esteve respaldado em proposições eurocêntricas, importado por nossas elites a partir de um apego às sociedades europeias como modelos de existência humana, isso inclui tanto a cultura, e o modelo de organização social, quanto o modelo de indivíduos ou de humanidade, isso inclui fundamentalmente a estética fenotípica branca, retoricamente colocada como representação do estágio superior da evolução humana. Seguindo tal proposição a mulher branca apareceria em estágio de superioridade como, o ideal de beleza e de representação do feminino, como já denunciavam nossas antecessoras, embora presentes ativistas da luta antirracista e anti-sexista, nesse momento me recordo de nossa admirável irmã, intelectual, militante, Sueli Carneiro.
O outro é o ideal de miscigenação, pensado como um elementar instrumento na edificação de uma sociedade branca que, através da mistura de raças propõe, na verdade, um processo de purificação verificada nos traços fenotípicos da população que passaria por gradações até chegar a um estágio de branquitude, esse ideal chega imbricado ao progresso da nação. Isto é, a mesma miscigenação viria a ser o amalgáma de uma nação que buscava em seu seio, a unidade. A suposta união das três raças (negro, indígena, branco) aparece no discurso como o fator de colagem dessa pátria fragmentada por diferenças raciais e étnicas que, ao longo dos anos, seriam negligenciadas em uma lógica de totalidade eugenista de ocultação das diferenças. Essas ideologias foram impulsoras do ‘Mito da Mulher Branca’ servindo como alicerce para a legitimação da subalternidade das mulheres negras no país, o ponto central desta nossas conversa.
A marcha contra os discursos e paradigmas racistas
Como todas sabemos, uma das frentes da luta antirracista consistiu em desmascarar tais ideais que, por muitos anos, foram disseminados intencionalmente pelo imaginário popular. E, consequentemente, surgiam algumas questões no intuito de enfraquecer a nossa fala: “mas quem é negro em país miscigenado?”, “E se dois irmãos, um negro e um branco, como vai ser?”, “E se alguém de pele branca mas com pai, mãe ou avós negros…?”. Enquanto isso, nossa contra-argumentação afrontava as teorias, sendo fundamentada no campo da prática, ou seja, do entendimento de como se dava tal reconhecimento nas relações raciais. O reconhecimento da negritude que, na maior parte das vezes se materializa por meio da violência – o racismo – acontece a partir da visualização, quero dizer, da fenotipia, o elemento fundamental e direcionador da trajetória de homens e mulheres negras do país.
Vivenciamos a concretização de muitas conquistas fruto de lutas desbravadas antes mesmo de muitas de nós termos nascido, e das muitas que estão por vir, ou seja, as continuidades estão sob nossas rédeas, e como nós, militantes d’agora ou meninas negras das próximas gerações iremos construir nosso empoderamento dependerá da responsabilidade, da atenção e do cuidado que depositaremos hoje.
A marcha chega a conquistas inéditas enquanto o poder branco tenta se rearticular
Temos alcançado projeções inéditas na história do povo negro desse país. Entretanto, desde que iniciamos o processo de ampliação das esferas negras de poder estas tendo se tornado espaços de disputas políticas e realizações individuais que nem sempre concretizam o empoderamento negro. Estou falando sobre aquisição de cargos públicos e políticos, as disputas partidárias, a promoção de carreiras acadêmicas respaldadas em produções de conhecimento que requer um olhar de dentro da história negra e/ou feminina, ou mesmo o fetiche pelas representações afro-centradas utilizadas como alegorias folclóricas por parte de pessoas e grupos não negras(os).
Penso que a autodeclaração é uma conquista individual e coletiva, porém, a falta de dispositivos que consideram as peculiaridades de nossa configuração racial tem sido utilizadas em algumas situações para respaldar retóricas para o (re)empoderamento branco das quais pretendo tecer minhas considerações.
Todos esses elementos têm servido ao ideal de embranquecimento que, em meio às lutas antirracistas, reafirmam e fortalece indivíduos brancos que se autoproclamam portadores da negritude ao mesmo tempo que mantêm privilégios decorrentes de suas corporeidades brancas.
O retrocesso tumultua a marcha mas não aceitamos parar
Deparamo-nos novamente com a invisibilidade e o silenciamento, tão enfrentados por nós e nossas matriarcas negras, uma vez que, somos novamente sobrepostas e esmagadas pela representação feminina branca que, mesmo no contexto de afirmação negra, se (re)empoderam em trajes, adornos afro, roupas coloridas, turbantes o fazendo com toda a convicção, imponência e altivez que construíram junto aos privilégios que o racismo nos tirou para presenteá-las.
Tais atitudes encontram respaldo em atitudes e discursos que constituíram e fortalecem as práticas racistas em nossos cotidianos como o ultrapassado mito da miscigenação que sustenta, por exemplo, o ser negra(o) por ancestralidade, um dos argumentos preferidos de indivíduos white-negritude.
Como mencionei, mais uma retórica ultrapassada, uma vez que comprovarmos que no cenário racista do tecido social, sujeitos brancos (miscigenados ou não) ocupam o front de poder e dos privilégios que pessoas negras (miscigenadas ou não) jamais alcançarão. Lembremos que, as operações raciais no Brasil não costumam nos perguntar ou medir quantos genes brancos ou negros carregamos em nossas informações genéticas, ou pela cor de nossos pais, mães avós ou bisavós.
O racismo não costuma nos dar tempo ou chance para clamarmos por possíveis ancestrais brancas(os), pois, estes, mesmo que existam ou sejam lembradas(os), não aparecem para nos socorrer quando estamos diante da navalha racista no cotidiano. O racismo à brasileira costuma ser direto, rápido e prático ele reconhece com facilidade e maestria a carne que deseja cortar, a corporeidade negra.
Nesse mesmo intercurso encontra-se o também retrógrado entendimento da negritude entrelaçada às relações de classes sociais. Segundo tal interpretação, a escravidão teria gerado uma classe dominada específica, sendo assim, os pobres do país seriam todos afro-descendentes e, portanto, negros. O que não distinguiria pobre branco de pobre negro.
As classes caíram por terra ao constatarmos que a existência das operações racistas ocorrem independentemente da classe social e desde que haja um conjunto de características físicas que façam com que o indivíduo seja socialmente interpretado como negra(o). Outro argumento usado em performances afro-convenientes é o da Consciência Negra, amparado muitas vezes por interpretações superficiais, acríticas e tendenciosas sobre as teorias das identidades formuladas, principalmente, no âmbito acadêmico.
Nessa proposição, ser negra(o) corresponderia a pensar ou refletir como tal, um posicionamento individual, uma escolha, uma atitude que independeria dos significados culturais e das relações de poder existentes no imaginário e nas práticas racistas do tecido social. Ora então amigas, se pensarmos que negritude é apenas um ato de posicionar-se teria sido fácil mudar de posição em situações como nossas muitas mal sucedidas entrevistas de emprego, diante de intimidações por parte de seguranças de lojas ou da polícia, em concursos de beleza, etc.
Era apenas nos posicionar então? Estamos todos esses anos perdendo nossos valiosos tempos lutando atoa por direitos se a solução estava no plano simbólico e discursivo de se posicionar ou se declarar deste ou daquele lado? Poderíamos ter declarado em situações de violência que nossas consciências eram brancas? Os significados culturais construídos sobre nós e as operações racistas, ou melhor, as(os) brancas(os) nos permitiriam tamanho livre acesso?
Pois bem, penso que todas nós temos a resposta….
Pois sabemos que o direito de optar qual posição poderíamos ocupar não nos foi concedido, é uma condição dada apenas ao grupo que sempre teve o privilégio como regra independente de suas autodenominações, inclusive para transitar e reinar em todos os espaços…
Podem até escolher a Cor da Consciência!
Manobras, afroconveniência e benevolência: consentiremos que a marcha das mulheres negras recue?
Em nossa marcha lutamos contra tais privilégios monocromáticos, por liberdade, por direito à voz, a representação e pelo “resgate de nossas imagens perdidas”… lembrando das sábias palavras de nossa querida e amada irmã, Beatriz Nascimento. Contudo, lutar por representações que foram perdidas em meio a escombros deixados pela violência racial implica em deixar de sermos intermediadas por representantes hegemônicas(os), certo? Entretanto, atualmente em meio a realizações e conquistas, convivemos com os contrapontos mencionados que se alimentam das incoerências reproduzidas por algumas irmãs e irmãos que mesmo intencionando lutar contra o racismo, não desconstroem os paradigmas que alimentam a manutenção e o (re)fortalecimento de certas facetas do racismo, principalmente aquelas que subalternizam mulheres negras.
O consentimento a atitudes de afroconveniência nos roubam o direito de fala, de representação e de existir em primeira pessoa.
Entretanto, em algumas esferas, por motivos diversos temos presenciado negros e negras se doarem como escudos de melanina para respaldar a hegemonia da fala de corporeidades brancas que se empoderam de nossas existências em suas White’tudes de apropriação. Nas universidades, um histórico espaço do poder branco e onde a hegemonia se reorganiza frequentemente no intuito de se manter, vemos esse (re)empoderamento por parte de pesquisadores(as) brancas que, muitas vezes, se apropriam da identidade negra para legitimar suas produções acadêmicas sobre as férteis e, hoje, promissoras temáticas sobre África e relações raciais.
Nesse caso, um dos principais respaldos são as leituras flutuantes e evasivas sobre identidades, além dos escudos de cor formado por alunas(os) orientandas(os) negras(os) que, na maioria das vezes, não passam de meras(os) coadjuvantes em pesquisas que rendem prestígios e méritos para extensos currículos Lattes , conferem os(as) “respeitáveis” doutores(as) ainda mais poder e legitimação para nos relegarem às margens do discurso (o limite para quem pode ou não pode falar).
Ilustres intelectuais carregados(as) em verdadeiras ‘liteiras’ por braços negros, muitas vezes de mulheres negras.
Em alguns meios que possuem no seu fio condutor de seus princípios de a solidariedade universal como é o caso de alguns segmentos religiosos que agregam a luta contra o racismo em suas pautas, vemos a manutenção de proposições oferecidas pelo mito da igualdade racial que se integra muito bem ao princípio de comunhão direcionado não ao empoderamento negro, mas para a harmonia entre as raças, designo muito bem ritmado no compasso da famosa aquarela de Brasil, ‘meu Brasil brasileiro’ … Entretanto, nessa aquarela a cor que se sobressalta é sempre a branca.
Neste mesmo perfil verificamos algumas entidades e partidos políticos onde presenciamos o surgimento de grupos que muitas vezes articulam discursos e se intitulam como movimento negro, mas que não necessariamente possuem o empoderamento negro como meta principal no direcionamento de suas práticas.
Neste caso, os principais trunfos de convencimento sobre seu comprometimento com a luta antirracista, hoje bastante promissora também na esfera política ao passo que crescem cada vez mais as reivindicações por politicas públicas para a promoção da igualdade racial, são, a melanina de alguns(as) de seus integrantes, muitas vezes escassas no quadro de filiados, e também, as falácias somadas á indumentárias folclóricas de integrantes brancas(os) afro-personalizadas(dos), estes, geralmente, respaldadas(os) pelas(os) primeiras(os), mais uma vez os escudos.
Em muitas dessas esferas o que prevalece são os disputismos, as manobras de poder pelo poder, a promoção do grupo e de carreiras.
Seguimentos nos quais raramente haverá verdadeiros destaques para mulheres negras, já denunciado por Lélia Gonzalez em uma carta em que registrava sua saída de um partido político no qual militou durante alguns anos.
A questão que compartilho com as amigas é a de por vezes perceber que a partir da introjeção do mito da igualdade racial que pressupõe um estado de harmonia entre as ‘raças’ e as dissonâncias de olhares viciados sobre a mestiçagem, os caminhos são abertos para confusões e equívocos em meio a práticas de benevolência que favorecem a reorganização dos meandros de sobrevivência do racismo/sexismo.
Corporeidades brancas em adornos caricatos nos encobrem e festejam nossas angústias
Concomitante a lutas por reconhecimento da história e da identidade negra, vemos espetáculos de folclorização onde surgem movimentos de valorização da cultura negra, mas, sem a obrigação de que haja gente negra dentro, estas substituídas por vestimentas, adornos, danças, ritos e diversas encenações.
Tornar-se negra(o), nesses casos, se restringi ao ato móvel de vestir-se e despir-se ditando Modas Étnicas como referencial de estética.
Nesta mesma órbita, os espaços negros nunca foram tão desejados e frequentados, quero dizer, os festivos, pois, não vemos desfiles de turbantes ou batas africanas em necrotérios, velórios de jovens negros nas periferias, em portas de cadeias ou penitenciárias ou qualquer atitude de fortalecimento para inúmeras mães pretas que, assim como seus filhos, não tiveram o direito a qualquer tipo de posicionamento político.
Nem homens nem Bárbies: mulheres negras protagonistas!
O implica em tudo isso, caras irmanzinhas, é que se não desconstruirmos paradigmas dominantes, se não separarmos bem nossos interesses pessoais que envolvem a convivência com indivíduos hegemônicos, podemos estar consentindo o (re)empoderamento de nossas queridas amigas brancas “bem intencionadas e comprometidas com a nossa causa”.
Nessa manutenção do Status quo, além deles, os homens, serão também elas, as brancas, as preceptoras de nossas marchas, continuarão sendo as autoras de nossos projetos, de nossas pesquisas, de nossos livros, as representantes das políticas raciais, as ocupantes dos cargos públicos, as condutoras e donas de nossas representações e de nosso discurso.
E conseguirão tudo isso dessa vez não mais somente por seus privilégios concedido pelo racismo, mas graças ao consentimento que você as doou blindado-as com sua solidariedade e com o escudo de sua negritude.
Serão nossas porta-vozes além de representantes da raça, uma vez que, as corporeidades brancas as contemplam antes mesmo de estarem adornada com seus figurinos ‘black-apelação’. Estarão armadas de artimanhas retóricas baseadas nas ‘mesmas chorumelas’ de sempre e o farão sem dor, mas, com “muita cor na consciência”.
Daí, o seu lugar mulher negra, será o de novamente, mera amiga da Bárbie Afro… Conveniente!
E ainda com o assunto das afetividades, será um terreno fértil para nossos velhos conhecidos Cirilos também se adornarem ao lado de suas preciosas em fantasias blackfaces, desta vez estarão devidamente amparados e justificados.
Marchamos contra o racismo que segue atropelando sem dar direito a vestimentas ou declarações
Pois bem irmãs, dói muito pensar que, enquanto por aí Cláudias Leites montam suas figurações com indumentárias e simbologias folclorizadas em seus verdadeiros “Carná-Turbantes” para transpor seus locais de fala e seduzir convicções acerca da legitimidade das dos espaços e das representações as quais desejam novamente dominar – NêgasLôras – Cláudias Negras são arrastadas diariamente pelos camburões do racismo que não permitem transposições de lugar ou escolhas por posicionamentos e não dão chances ou o direito a ‘declarações’( NegrasDramas).
Esse texto é dedicado às nossas marchas, é com carinho para você que o compreendeu, e para você que ainda não conseguiu entender somente recue e ponha-se no seu lugar, não no meu!
E com no mesmo clima de homenagens e reflexões, termino essa conversa rememorando uma fala de Conceição Evaristo, “escrever é um ato político”. Faço aqui o meu.