Semana passada li na Revista Cult nº 211 a entrevista com Grada Kilomba – nascida em Portugal com ascendência são-tomense e angolana, escritora, ensaísta e artista interdisciplinar doutora em Psicologia Clínica e Psicanálise pela Freie Universitat, na Alemanha e uma das perguntas feitas pelo jornalista Helder Ferreira foi sobre a dificuldade do Brasil de reconhecer e problematizar o racismo e ela respondeu:
“O RACISMO TEM ESSA CAPACIDADE DE NORMALIZAR A VIOLÊNCIA. ELE É COMO UMA MÁQUINA MUITO SOFISTICADA QUE ESTÁ SEMPRE SE ADAPTANDO AO CONTEMPORÂNEO. TORNA-SE SEMPRE UMA NORMA. POR ISSO É TÃO IMPORTANTE ANALISAR CRITICAMENTE, POR SER “NORMAL” E FAZER PARTE DO COTIDIANO DAS PESSOAS”
e essa semana saiu a programação da Flip 2016 como sendo a Flip que mais teve escritoras mulheres convidadas, primeiro minha página no facebook começou a chover de escritoras brancas felizes e contentes com essa “conquista” fui rapidamente dar uma olhada nas convidadas, vai que eu encontrasse ali um motivo para ir pela primeira vez à FLIP caso tivesse nomes das minhas escritoras da diáspora como as afro-americanas Toni Morrison e Alice Walker, a moçambicana Paulina Chiziane, a nigeriana Chimammanda Adichie ou as escritoras negras brasileiras como Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Lia Vieira, Lívia Natália, Miriam Alves ou talvez uma homenagem à escritora Alzira Rufino ou a Geni Guimarães. A gente (pessoas ingênuas e inocentes como eu) que pensa que vai encontrar algum tipo de representatividade em alguns dos nomes listados, não reconheci nenhum dos nomes listados e me questionei o motivo de tanta alegria por parte das escritoras brancas que tenho na minha página e rapidamente lembrei de uma leitura do livro “ensinando a transgredir – a educação como prática da liberdade” de bell hooks no capítulo “De mãos dadas com minha irmã” no qual ela diz:
“AS DISCUSSÕES ATUAIS SOBRE A HISTÓRIA DOS RELACIONAMENTOS ENTRE MULHERES BRANCAS E NEGRAS TÊM DE LEVAR EM CONTA A AMARGURA DAS ESCRAVAS NEGRAS DIANTE DAS MULHERES BRANCAS. ELAS TINHAM UM RESSENTIMENTO COMPREENSÍVEL E UMA RAIVA REPRIMIDA DA OPRESSÃO RACIAL, MAS MAGOAVAM-SE PRINCIPALMENTE PELA ESMAGADORA AUSÊNCIA DE COMPAIXÃO DAS MULHERES BRANCAS NÃO SÓ EM CONDIÇÕES QUE ENVOLVIAM O ABUSO FÍSICO DAS NEGRAS COMO TAMBÉM EM SITUAÇÕES EM QUE AS CRIANÇAS NEGRAS ERAM SEPARADAS DE SUAS MÃES ESCRAVAS. (…) A COMPREENSÃO DAS EXPERIÊNCIAS COMUNS A TODAS AS MULHERES NÃO MEDIAVA AS RELAÇÕES ENTRE A MAIORIA DAS SENHORAS BRANCAS E AS ESCRAVAS NEGRAS”,
Tanto a Grada Kilomba quanto a bell hooks trazem os possíveis motivos para que seja tão normal não ter escritoras negras em uma FLIP que nas matérias foi intitulada como “Flip das Mulheres”, e eu me pergunto quais mulheres?
A representatividade é algo que eu busco em todas as instâncias da minha vida e quero finalizar como uma contribuição literária de escritoras negras que me acompanham e me fortalecem como mulher negra e escritora:
Boletim de ocorrência – Alzira Rufino – 1988 – Livro: Eu , mulher negra, resisto
Mulher negra,
não para
por essa coisa bruta
por essa discriminação morna,
tua força ainda é segredo,
mostra tua fala nos poros
o grito ecoará na cidade,
capinam como mato venenoso
a tua dignidade,
ferem-te com flechas encomendadas
te fazem alvo de experiências,
tua negritude incomoda
teu redemoinho de força afoga
não querem a tua presença
riscam teu nome com ausência
mulher negra, chega
mulher negra, seja
mulher negra, veja
depois do temporal.
RESSURGIR DAS CINZAS – Esmeralda Ribeiro – Livro Cadernos Negros, volume 27 – 2004
Sou forte, sou guerreira,
tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
mesmo que haja versos assimétricos,
mesmo que rabisquem, às vezes,
a poesia do meu ser,
mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caído ao chão”.
Sou destemida,
herança de ancestrais,
não haja linha invisível entre nós
meus passos e espaços estão contidos
num infinito túnel,
mesmo tendo na lembrança jovens e parentes que, diante da batalha deixaram a talha
da vida se quebrar,
mesmo tendo saudade cultivada no portão.
Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão” .
Sou guerreira como Luiza Mahin,
Sou inteligente como Lélia Gonzáles,
Sou entusiasta como Carolina de Jesus,
Sou contemporânea como Firmina dos Reis
Sou herança de tantas outras ancestrais.
E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá,
mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar,
mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da injustiça
mesmo assim tenho este mantra eu meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
Sou da labuta, sou de luta,
herança dos ancestrais,
trabalhar, trabalhar, trabalhar,
mesmo que nos novos tempos irmãos seduzidos
pelo sucesso vil me traiam, nos traiam como judas
sob a mesa, meu, ganha-pão.
Mesmo que esses irmãos finjam que não nos vêem,
estarei ali ou onde estiver, estarei de corpo ereto,
inteira,
pronunciando versos e eles versando sobre o poder,
mesmo assim tenho esse mantra em meu coração
“Nunca me verás caída ao chão”.
Me abraço todos os dias,
me beijo,
me faço carinho, digo que me amo, enfim,
sou vaidosa espiritual,
mesmo com mágoas sedimentadas no peito,
mesmo que riam da minha cara ou tirem sarro do meu jeito,
mesmo assim tenho esse mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
Me fortaleço com os ancestrais,
me fortaleço nos braços dos Erês.
podem pensar que me verão caída ao chão,
saibam que me levantarei
não há poeiras para quem cultua seus ancestrais,
mesmo estando num beco sem saída, levada por um mar de águas,
mesmo que minha vida vire uma maré,
vire tempestade, sei que vai passar.
Porque são meus ancestrais que se reúnem num ritual secreto
para me levantar.
Eu darei a volta por cima e estarei em pé, coluna ereta,
cheia de esperança, cheia de poesia e com muito
axé
por isso, desista, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão.”
ROSA PRETA – Maria Tereza – Livro: Negrices em Flor, 2007.
Eu não sou filha da regra exata
Eu que não sou filha do acaso puro
Eu que sou afrorústica brasileira
Atenta quando o tema é pensamento
Quando esse fluxo mensal poético
Inunda meu sistema nervoso
Neste corpo cheio de poros sei muito bem do meu osso
Sou Rosa Negra, quase parente do cáctus
Minhas raízes se ramificam Frutoflorificantes
Donde vim, donde vim sim, Frutoflorificantes
No baobá que pronde vou, fui e vim.
Não vou mais lavar os pratos – Cristiane Sobral – Livro: Não vou mais lavar os pratos – 2010.
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros…
Ah,
Esqueci de dizer. Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada
e olho a sujeira no fundo do copo
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata, cozinhas de luxo
E jóias de ouro
Legítimas
Está decretada a lei áurea.
Calar o grito/Gritar o Silêncio…
Elizandra Souza. Águas da cabaça, 2012.
Entoa a canção…
Harmoniza os passos descompassados
Pulsam de vida: a voz, a vida e a rima
As crianças ouvem o silêncio das palavras
Os homens insultam os gritos das crianças
As mulheres desejam os silêncios e os gritos
Os gritos e os silêncios….
Neste ritmo…
O silêncio….
O grito….
O silêncio….
O grito….
O grito…
O silêncio…
No fundo elas vão calar o grito…
E gritar o silêncio….
Calar o grito!
Gritar o silêncio!
Domesticar – Débora Marçal – Pretextos de Mulheres Negras – 2013
Violência doméstica é levantar a voz
quando já tem um pênis social para se esconder por trás
Violência doméstica é ameaçar que vai bater
quando o peso do seu braço é quase o peso do corpo do outro
Violência doméstica é o olhar feio
que faz o corpo inteiro se calar para sempre
Violência doméstica é pedir desculpas depois de uma tentativa de homicídio
Violência doméstica é proferir palavras de baixo calão contra a liberdade de expressão alheia
Violência doméstica é ameaçar mesmo quando não vai completar as outras violências
Violência doméstica é só um se embriagar e todos os outros pagarem com sangue a covardia
Violência doméstica é …
domesticar!
DESENSINAMENTOS – Jenyffer Nascimento. Livro: Terra Fértil – 2014
Estão a moldar nossos pensamentos,
A roubar nossa autoestima.
Nos ensinaram um andar cabisbaixo.
Corpos curvados encaram o chão
Como se olhar o céu ou o front
Não fosse algo permitido para negras
Lavadeiras, cozinheiras, professoras,
Balconistas, cabeleireiras e universitárias
Como nós.
Nos ensinaram que somos feias.
As capas de revistas não nos querem.
Os garotos nas escolas não nos querem.
Os cargos executivos não nos querem.
Os maridos não nos querem.
Reparem bem no que dizem.
Está tudo assim desproporcional,
Grande demais ou escuro demais.
Pelo menos ajeitem esses cabelos.
Ensinaram a moldar nossos corpos,
A tirar nossa expressividade.
Nos ensinaram coreografias pré-moldadas,
Em que o balanço e a espontaneidade não cabem,
E assim, pouco a pouco deixamos de dançar.
Somos corpos reprimidos que pairam
Por medo de errar a coreografia,
De errar a medida, de errar…
Corpos doentes.
Corpos endurecidos.
Corpos infelizes.
Estão a moldar nossos sentimentos,
A negligenciar nosso sentir.
Nos ensinaram a ser fortes.
Aguentar o sol forte queimando na cara
Ao carregar a lata d´água na cabeça,
A aceitar humilhação da patroa,
A parir sem gritar ou gemer,
A criar os filhos sozinhas.
A esconder o choro de solidão,
A não pedir ajuda a ninguém,
A esquecer de si mesma.
Nos ensinaram a calar.
A não dizer o que sentimos, nem o que pensamos.
As coisas são como são e ponto. Tá entendido?!
Na prática ninguém costuma mesmo
Dar ouvidos a uma mulher, a uma negra.
Que diferença faz o que você disser?
Quantas vezes adiantou falar?
Eles sempre dirão
“Você só fica bonitinha assim, calada”
Aprender a calar antes que te calem.
(…)
Então um dia
Outras mulheres negras
Das mesmas fileiras que nós
Nos ensinaram que tudo que tínhamos aprendido
Era uma grande farsa.
Foi quando aprendemos a lutar.
E daí? – Raquel Almeida – Livro: Sagrado Sopro – 2014
Daí, as coisas não terminam
Entre o fio da meada
E o fim do começo
Daí, nos questionamos
Debruçamos entre os murros,
As lágrimas, e o fio da espada
Daí, empunhamos a capa da guerreiragem
Anulamos por vez nossos encantos
Desencantando o estalo
Deixamos para trás…
Embora o amor seja ferida aberta
Não transparece, porque amar ainda
É uma incógnita
E somos fortes demais para admitir que amar dói
Daí, preferimos o quadradinho das nossas teimosias
E seguimos
Chorando, sorrindo e fingindo
Daí, a vida passa entre os rios…