Enquanto a história negra britânica está faminta de oxigênio, a luta dos EUA contra o racismo é globalizada de tal forma que se torna a luta contra o racismo no qual devemos procurar inspiração – ofuscando tanto a história dos negros britânicos que nos convencemos de que a Grã-Bretanha nunca teve um problema com a raça.
Trecho retirado do livro Porque eu não estou mais conversando com gente branca sobre raça da escritora Reni Eddo-Lodge.
A frase acima, presente no livro de Reni Eddo-Lodge, nunca esteve tão atual, nos lembra a onda de protestos e manifestações que tomou conta das ruas e redes sociais no final de março e início de junho de 2020 pedindo justiça pela morte do norte-americano George Floyd, uma ferida ainda recente, que como sabemos não cicatrizará, logo outro George Floyd surgirá, assim como tantos outros.
As manifestações contra o racismo nos EUA abriram o debate sobre o tema em diversos países, mas em locais onde o racismo é tão explícito quanto, como é o caso do Brasil, por que só agora é que estamos discutindo sobre? Talvez seja pela constante negação do preconceito por raça em que países como Brasil e Grã-Bretanha (país da autora do livro) vivem. É esse ponto que Reni Eddo-Lodge foca.
A autora nos leva a uma viagem pela história de seu país, desde o período escravocrata, passando por campanhas de repatriamento onde 600 negros foram enviados aos seus países de origem visando eliminar a possibilidade de miscigenação da população britânica e o fim de revoltas raciais que estavam ocorrendo, esses fatos se assemelham à tese eugenista com sua política de branqueamento no Brasil entre os séculos XIX e XX.
As semelhanças entre o Brasil e Grã-Bretanha não param por aí, a forma violenta em que a polícia entrava nos bairros e nas casas de cidadãos negros de forma completamente arbitrária também nos lembra o que parte da população brasileira, principalmente a do Rio de Janeiro, vem enfrentando desde o final dos anos 90 e agora ainda mais com a política de extermínio da juventude negra promovida pelo atual governador do Rio, Wilson Witzel. Essas e outras “coincidências” nos faz perceber que corpos negros são e sempre foram o principal alvo da opressão, mas com tantos fatos, por que ambos os países não estão prontos para falar sobre racismo?
Na obra, Reni Eddo-Lodge discorre sobre as inúmeras razões pela qual ela não conversa mais sobre racismo com pessoas brancas, algumas giram em torno da indiferença dessas pessoas sobre a cor da pele, tanto com relação a de pessoas negras, visto que lhes foi ensinado que não se deve ver diferença entre pessoas de cores distintas, para eles todos somos iguais, como com relação a sua própria cor, já que o branco é visto como o comum, quando são confrontados com a percepção de que branco também é cor é possível ver o meme da Nazaré estampado em sua face, e também pelo fator mais problemático que é não entender o que significa ser branco em termos de poder, como sua cor serve para abrir portas e todos os privilégios que a cercam.
Esse negacionismo de privilégios apresentado pela autora é o que faz o brasileiro incapaz de discutir sobre o racismo estrutural, termo que vem ganhando cada vez mais espaço na internet e na grande mídia, mas que poucos estão abertos a entenderem e discutirem.
Usando de frases prontas, como “o Brasil é um país miscigenado” “somos todos iguais”, a mesma branquitude que as fala também exclui de sua história o povo indígena e os milhares de africanos que foram trazidos a força para trabalhar neste país e segue exaltando a herança europeia, tanto de Portugal como a dos demais europeus que ganharam uma segunda pátria através de políticas brasileiras criadas para facilitar a vinda de imigrantes para cá oferecendo trabalho e moradia.
Essa negação de privilégios faz com que os mesmos fechem os olhos para estatísticas como a de que 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negras*, que a taxa de analfabetismo em pessoas negras é de 9,1% sendo três vezes maior que a de brancos**, que por sinal são minoria no Brasil, ou ainda que o rendimento mensal da população branca é 73,9% superior a da população negra***, isso sem considerar a questão do sexo, pois se fizermos esse recorte, o abismo será ainda maior, todos esses dados nos leva a encontrar o fator comum: o racismo, mas que para a branquitude é apenas uma questão de sorte, de entrega, de meritocracia.
Enquanto as pessoas brancas fecharem os olhos para o racismo neste país, presente há mais de 500 anos, não ouvirem o que os negros têm a dizer, torcendo o nariz, se sentindo ofendidas quando é dito que elas são parte do problema, de uma forma ou outra, diminuindo a dor de quem sofre na pele com essas estatísticas e, principalmente, não questionarem o seu privilégio de raça, o Brasil seguirá da mesma forma, se indignando com mortes de negros norte americanos e fechando os olhos para a violência a qual negros brasileiros são submetidos todos os dias. Dos Estados Unidos, passando pela Grã-Bretanha ao Brasil, toda vida negra importa.
*Atlas da Violência 2019, uma publicação do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
**Pesquisa realizada em 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
*** Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil de 2019 divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Imagem – Blogueiras Negras