É possível exercer a imaginação, a inventividade e a criatividade em meio a uma crise apocalíptica como a que estamos vivendo agora? Uma resposta que nos parece bastante simples se considerarmos que pensar o futuro é uma característica própria à humanidade, não sendo restrita a um grupo de pessoas. Ainda mais a partir da constatação de que essa foi uma das ferramentas mais poderosas no enfrentamento às seculares práticas escravocratas transatlânticas, que ainda vigoram e reverberam sobre todas nós.
Foi exatamente a nossa capacidade de pensarmos os tempos futuros que nos trouxe até aqui. O que nos faz em primeiro lugar reconhecer e valorizar nossa própria história e humanidade. Que, justamente por isso, oferecem diversas compreensões e práticas acerca do que é o Afrofuturismo.
Entretanto, nesse mar de coisas, sempre houve uma constante: aquela de entender muito bem os tempos passados e presentes para criar possibilidades futuras. Sobretudo em contextos extremamente desafiadores como esses que vivemos agora e que se entrecruzam com temas como tecnologia, política e meio ambiente.
Talvez seja impossível para as pessoas mais jovens pensar que um dia fazer um simples telefonema exigia grande esforço. Isso significava pedir ajuda para outra pessoa que tivesse um aparelho em casa ou chegar até um orelhão que funcionava com fichas. Assim como para as pessoas mais velhas pareça bastante surreal o modo como algumas crianças (que podem) trafegam pelo mundo de telas e botões com uma desenvoltura admirável.
Entretanto os desafios são muito maiores que isso, principalmente no campo da coletividade.
Os impactos de dispositivos conectados à Internet, que funcionam através de inteligência artificial por vezes associadas ao cérebro humano e a processadores microscópicos, trazem profundas implicações políticas para a sociedade. Quase sempre aprofundando injustiças e desigualdades com a tecnologização de uma cidadania de segunda classe em que as pessoas têm direitos sequestrados em função de quem são, o quanto podem comprar e da sociedade que querem construir.
O que nos faz questionar de que inteligência estamos falando.
Um dos exemplos foi o Smart Sampa, um sistema de monitoramento tendencioso desenhado para identificar pessoas suspeitas no transporte público na cidade de São Paulo por meio da cor de pele, roupas, atividades e tempo de permanência em determinado local. E o que dizer sobre a assustadora possibilidade de robots da polícia terem permissão para matar “suspeitos perigosos” em “casos extremos” na cidade de São Francisco (EUA), onde pessoas negras têm 9,7 vezes mais chances de serem mortas pela polícia? Qual seria o significado e o alcance dessa tecnologia em um país como o Brasil, onde ações policiais vitimizam pessoas negras todos os dias?
Dois projetos potencialmente genocidas, desenvolvidos num contexto de políticas de encarceramento em massa da população negra, que foram obrigados a recuar diante da poderosa atuação da sociedade civil, nos oferecem a oportunidade de falar de política. Afinal, quem são as pessoas com o poder de pensar, criar e aprovar tais iniciativas? Em outras palavras, pode uma sociedade ser democrática e inteligente se mata, seja pela violência letal ou pela fome, cotidianamente? De que Estado Democrático de Direitos estamos falando?
E a fome, onde entra nessa história? Das 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, 70% são negras, com destaque para as regiões Norte e Nordeste onde estão concentradas a maior parte dessas pessoas em números absolutos e proporcionais respectivamente, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).
Isso sem falar das inúmeras interseccionalidades presentes no “ser uma mulher negra”. Estamos em busca dessa mesma liberdade apenas para quem espelha nossa existência, sob pena de sermos parciais na busca de nossa humanidade? Seguiremos repetidamente virando as costas para quem está ao nosso lado não apenas na luta mas também na vida?
Não podemos sequer falar em defesa da democracia se crianças Yanomami estão morrendo mais que todas as outras por mortes evitáveis, quando somos signatárias de uma aliança de parentesco que sabiamente nos fazem irmãs na luta contra as violências que recaem sobre nossos corpos. É sabido que temos apenas um planeta…
O que nos faz chegar no conceito de Afrofuturismo e como ele se aproxima – ou não – de nós, de acordo com dois manifestos sobre o assunto: Manifesto Afrosurreal – um documento vivo (numa tradução livre), escrito por Scot Miller em 2009, que funda o movimento Afrosurreal como estilo; e o Manifesto Afrofuturista Mundano, escrito em 2013 por Martine Syms. Ambos com autoria negra norte-americana, respectivamente escritos por um poeta, curador, professor e uma artista e cineasta.
Nos pareceu astuto pensar dialogicamente sobre, como adverte Patricia Hill Collins em Bem mais que ideias (2018) partindo da “relação recorrente entre as perguntas, as evidências e a utilidade das explicações (teorias) para a tarefa em questão”, outro exercício fundamental à proposição de uma Democracia Negra.
Afinal, nada mais mundano do que o exemplo daqueles “que criam à partir de suas experiências reais e vividas (…) sobre o presente (…) chamado AGORA MESMO” para transitar para “além do mundo visível” em toda sua ambiguidade ao mesmo tempo que nada seria surreal do que a persistente necessidade de uma “construção de mundos fora do imperialismo, do capitalismo, do patriarcado branco”.
É importante negritar que Mark Dery não funda a prática, apenas observa a cena como um objeto de estudo. Ao entrevistar nomes como Samuel Delany, Octavia Butler, Steve Barnes e Charles Saunders, seu maior interesse era investigar “um mapa de uma pequena esquina da largamente inexplorada psicogeografia do Afrofuturismo.” Interessado, mas ainda do lado de fora, olhando para aquilo que chama de ficção científica.
Sua pergunta era muito simples, traduzida de forma livre: “Pode uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas pela busca de traços legítimos de sua história, imaginar futuros possíveis?”
Ao que responde ao afirmar que “vozes Afro-Americanas”, a quem ele chama de “descendentes de alienígenas abduzidos” numa aproximação que foi discutida pela perspectiva negra de Jenny Lumet em O homem que caiu na Terra (2022), “tem outras estórias para contar sobre cultura, tecnologia, e coisas por vir.”
Enquanto o rapper novaiorquino Jef Def que usou o título Negro para o Futuro pela primeira vez no álbum Apenas um poeta com alma (Just a Poet with a Soul, 1989/1990), Scot Miller e Martyne Syms estão pensando, fazendo e teorizando arte ao mesmo tempo. Abrindo possibilidades dialógicas em frentes de batalha, ontem e hoje.
Num contexto extremamente polarizado em que não mais partilhamos a cidadania, nos tornamos inimigos a serem silenciados e exterminados. Os ataques à democracia muitas vezes são feitos dentro das “quatro linhas da constituição”. Um modelo que nada tem de novidade, se olharmos com atenção para os dois últimos séculos de história, mas que exige forte compromisso entre aquelas que foram e são nossas mais velhas, as que estão no meio do caminho e as que estão e serão responsáveis pela luta por liberdade e por um futuro em que tenhamos direito à vida em sua plenitude.
Pensar afrofuturos é, portanto, sobre um dos desafios mais importantes das mulheres amefricanas nesse século. É sobre a nossa participação política em um mundo em que a ideia e prática da democracia, mesmo incompleta e justamente por isso, se torna cada vez mais um sonho distante, dentro e fora da Internet. Como evidenciaram as demissões em massa no mercado da tecnologia, as últimas eleições brasileiras e, daqui a pouco, os 100 primeiros dias do próximo governo. Seguiremos elaborando pensamentos e executando planos para construir um bem-viver que será herdado por demais gerações!
Referências
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