Uma semana que refaz toda sua vida. Essa semana [boca de carnaval e confusão] fez querer invocar os Ancestrais e convocar toda a comunidade: os traficantes, os pretos evangélicos, as rappers negras, as pretas diretoras dos sindicatos, os panafricanistas e as feministas negras juntas. As tias do churrasco em Santo Amaro e as Baianas de Acarajé do CIA, pra dizer: não vamos aceitar mais nenhum corpo preto no chão.
Nise disse que o racismo é tão profundo que amortece nossa noção de realidade, nos aliena. Concordo e replico: não vamos nos furtar da obrigação de explicar aos nossos que a morte não é por que “ele é envolvido”ou “tá no movimento”! Extermínio é um projeto de poder, é eugenia. E quem não viu, vá ver: Hilton Cobra incomoda, emociona e revolta com Fernanda Júlia na direção de “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto”.
“Militante e não contemplativo, cheio de arremates e arrebiques” era o que dizia Lima Barreto sobre sua escrita, reescrito no texto de Luiz Marfuz para Hilton Cobra. O que também pensamos como deve ser a literatura, o teatro, a vida.
Não dá pra ficar imune na guerra pela eugenia. Passível, paralisada, morta ao ver a morte dos meninos no supermercado como em qualquer cidade dos Estados Unidos, como os estupros e desnudamentos das mulheres no Quênia, como o assassinato covarde de Mestre Moa. Não podemos ficar num lugar de conformação: Não é pelo envolvimento! É pela nossa cor!
Qual é o argumento da polícia que sequestra, arrasta (lembra da Claudia?), tortura e abandona os corpos no CIA/Simões Filho? Qual é a lógica da matança de 12 no Cabula, dos 111 tiros no Rio de Janeiro, do assassinato de Mike Brown, da prisão de Rafael Braga? Não sei quais são as respostas que vocês dão a tudo isso, mas quando vejo meu irmão dormindo e desistindo dos projetos lindos de sua vida, eu só consigo pensar que o racismo destrói nossa possibilidade de vida: POSSIBILIDADE DE VIDA!
Os dias de hoje merecem levantes, Bidhu! E ver essas coisas deixam a gente tão triste que até carnaval vira banalidade, quem eu amo sabe. Agora, a gente não vai deixar passar mais nada: nenhuma cerveja derrubada, nenhum olhar torto na rua, nenhum pouco desvio de corpo na calçada, porque é sua vida, meu irmão, que mufina diante dos meus olhos de levante.
Nosso desejo? LEVANTE! Palmares, Canudos, Cabanagem. Esse mundo não nos serve, não nos pertence, não é Nise? Hilton Cobra que nos disse: “Olhei nos olhos, no fundo dos olhos dele, meu grande amigo branco, e disse: vá tomar no c***”.
Um levante, meu irmão, que clama nossa alma, lá em Nazaré das Farinhas. Uma continuidade da oferta linda que é a vida dos nossos. Um levante calmo e melódico, como as letras do rap, como o sax de Coltrane e as notas emocionais da Runpilez cheia de Ijexá. Levante, por esse momento trágico, mas ainda assim tão nosso!
Um levante negro: trágico, colorido e trágico tal qual as músicas gravadas em Itaparica chamando Mestre Moa pra presença. Uma vida de levante com capoeira de modus operandi.
Uma liberdade que só quem a teve em integralidade, com a natureza em harmonia, reclama da sua falta. A gente nunca vai deixar de gritar que nossos mortos vivem. E lutam, viu Moacir dos Anjos? NOSSOS MORTOS ESTÃO VIVOS E LUTAM!
Aos nossos ancestrais, por cada lágrima das mães pretas e por toda noite de insônia de minha mãe: Um levante!
Nossos Mestres vivem!