Em primeiro lugar nosso muito obrigada a todas as mulheres que colaboraram para que esse texto fosse feito.
(…)
O diálogo se inicia com a tradução, feita por Suzane Jardim, réplica que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie publicou em seu perfil no facebook ao ser criticada por suas declarações transfóbicas.
Em seguida temos as falas de Maria Clara Araújo, Laverne Cox e Ana Flor Fernandes Rodrigues sobre a questão do “privilégio masculino” e as mulheres trans.
Seguindo o mesmo método que Suzane utiliza para traduzir Chimamanda, colocamos o texto original junto à tradução da fala de Laverne, cujas palavras inspiram o título desse post.
Boa leitura.
Esclarecendo, Chimamanda Ngozi Adichie
Texto originalmente publicada no Medium, por Suzane Jardim
CLARIFYING: Esclarecendo
Because I have been the subject of much hostility for standing up for LGBTQ rights in Nigeria, I found myself being very defensive at being labeled ‘trans phobic.’
Por ter sofrido uma porrada de hostilidades por ter me levantado a favor dos diretos LGBTQ na Nigéria, me encontro em uma posição defensiva ao ser chamada de “transfóbica”.
My first thought was — how could anyone think that?
I didn’t like that version of myself. It felt like a white person saying ‘I’m not racist, I supported civil rights.
Because the truth is that I do think one can be trans phobic while generally supporting LGBTQ rights.
Meu primeiro pensamento foi — como qualquer um poderia pensar isso?
Não gosto dessa versão de mim mesma. Parece uma pessoa branca dizendo “Eu não sou racista, eu apoiei os direitos civis”.
Porque a verdade é que eu penso que qualquer um pode ser transfóbico enquanto geralmente apóia os direitos LGBTQ.
And so I want to put my defensiveness aside and clarify my thoughts. To make sure that I am fully understood.
E então eu quero colocar minha defensiva de lado e esclarecer meus pensamentos. Para ter certeza que serei completamente compreendida.
I said, in an interview, that trans women are trans women, that they are people who, having been born male, benefited from the privileges that the world affords men, and that we should not say that the experience of women born female is the same as the experience of trans women.
Eu disse, em uma entrevista, que mulheres trans são mulheres trans, que são pessoas que, tendo nascido homens, são beneficiadas pelos privilégios que o mundo delega aos homens, e que nós não devíamos dizer que a experiência de mulheres nascidas mulheres é a mesma experiência das mulheres trans.
This upset many people, and I consider their concerns to be valid. I realize that I occupy this strange position of being a ‘voice’ for gender rights and so there is an automatic import to my words.
Isso chateou muita gente e eu considero essas preocupações válidas. Eu percebi que ocupo uma posição estranha sendo uma “voz” dos direitos de gênero e isso é automaticamente transferido para minhas palavras.
I think the impulse to say that trans women are women just like women born female are women comes from a need to make trans issues mainstream. Because by making them mainstream, we might reduce the many oppressions they experience.
But it feels disingenuous to me. The intent is a good one but the strategy feels untrue. Diversity does not have to mean division.
Acho o impulso de dizer que mulheres trans são mulheres exatamente como as mulheres nascidas mulheres vem de uma necessidade de tornar as pautas trans populares. Porque ao tornar popular, nós poderíamos reduzir as muitas opressões dessa experiência.
Mas isso me soa não muito sincero. A intenção é boa mas a estratégia soa não verdadeira. Diversidade não precisa significar divisão.
Because we can oppose violence against trans women while also acknowledging differences. Because we should be able to acknowledge differences while also being supportive. Because we do not have to insist, in the name of being supportive, that everything is the same. Because we run the risk of reducing gender to a single, essentialist thing.
Porque podemos nos por à violência contra as mulheres trans enquanto também reconhecemos as diferenças. Pois deveríamos ser capazes de reconhecer diferenças enquanto somos apoiadores. Porque nós não temos que insistir, em nome de sermos apoiadores, que é tudo a mesma coisa. Porque corremos o risco de reduzir o gênero a uma coisa única e essencialista.
Perhaps I should have said trans women are trans women and cis women are cis women and all are women. Except that ‘cis’ is not an organic part of my vocabulary. And would probably not be understood by a majority of people.
Talvez eu devesse ter dito que mulheres trans são mulheres trans e mulheres cis são mulheres cis e todas essas são mulheres. Exceto que “cis” não é uma parte orgânica do meu vocabulário. E poderia provavelmente não ser compreendida pela maioria das pessoas.
Because saying ‘trans’ and ‘cis’ acknowledges that there is a distinction between women born female and women who transition, without elevating one or the other, which was my point.
Porque ao dizer “trans” e “cis” reconhecemos que há aí uma distinção entre mulheres nascidas mulheres e mulheres que transicionaram elevando uma ou outra, esse é o meu ponto.
I have and will continue to stand up for the rights of transgender people. Not merely because of the violence they experience but because they are equal human beings deserving to be what they are.
Tenho feito e continuarei me levantando pelos direitos das pessoas transgêneras. Não meramente por causa da violência que vivem mas porque são igualmente seres humanos e merecem ser o que são.
I see how my saying that we should not conflate the gender experiences of trans women with that of women born female could appear as if I was suggesting that one experience is more important than the other. Or that the experiences of trans women are less valid than those of women born female.
Eu vejo como minha fala de que nós não devíamos comparar as experiências de gênero de mulheres trans com as das mulheres nascidas mulheres pode soar como se eu estivesse sugerindo que uma experiência é mais importante do que a outra. Ou que as experiências de mulheres trans são menos válidas do que as experiências de mulheres nascidas mulheres.
I do not think so at all — I know that trans women can be vulnerable in ways that women born female are not. This, again, is a reason to not deny the differences.
Não é isso que eu penso — Sei que mulheres trans podem ser vulneráveis de modos que mulheres nascidas mulheres não são. Isso, novamente, é a razão para não negar as diferenças.
Why does this even matter?
Because at issue is gender.
Por que isso importa?
Porque o assunto é gênero.
Gender is a problem not because of how we look or how we identify or how we feel but because of how the world treats us.
Gênero é um problema não por causa do que parecemos, de como nos identificamos ou de como nos sentimos, mas por causa de como o mundo nos trata.
Girls are socialized in ways that are harmful to their sense of self — to reduce themselves, to cater to the egos of men, to think of their bodies as repositories of shame. As adult women, many struggle to overcome, to unlearn, much of that social conditioning.
Garotas são socializadas de modos que são danosos para seus sensos de identidade — para reduzir a si mesmas, para satisfazer o ego masculino, pensar que seus corpos são repositórios de vergonha. Como mulheres adultas, lutamos muito para superar e desaprender muito desse condicionamento social.
A trans woman is a person born male and a person who, before transitioning, was treated as male by the world. Which means that they experienced the privileges that the world accords men. This does not dismiss the pain of gender confusion or the difficult complexities of how they felt living in bodies not their own.
Uma mulher trans é uma pessoa nascida homem e uma pessoa que, antes da transição, era tratada como um homem pelo mundo. Isso significa que experimentaram os privilégios cedidos pelo mundo aos homens. Isso não desconsidera a dor da confusão de gênero ou as difíceis complexidades de se sentir vivendo em um corpo que não é o seu.
Because the truth about societal privilege is that it isn’t about how you feel. (Anti-racist white people still benefit from race privilege in the United States). It is about how the world treats you, about the subtle and not so subtle things that you internalize and absorb.
Porque a verdade sobre privilégios sociais é que eles não são sobre como você se sente. (Pessoas anti-racistas ainda são beneficiadas pelos privilégios de raça nos Estados Unidos). Isso é sobre como o mundo te trata, sobre as coisas sutis e não sutis que você internaliza e absorve.
This is not to say that trans women did not undergo difficulties as boys. But they did not undergo those particular difficulties specific to being born female, and this matters because those experiences shape how adult women born female interact with the world.
Isso não é dizer que mulheres trans não passam por dificuldades como garotos. Mas não passam pelas dificuldades específicas e particulares de se ter nascido mulher, e isso importa porque essas experiências moldam o modo que mulheres adultas nascidas mulheres interagem com o mundo.
And because to be human is to be a complex amalgam of your experiences, it is disingenuous to say that their being born male has no effect on their experience of gender as trans women.
E porque o ser humano é um complexo amálgama de suas experiências, não é sincero dizer que ter nascido como homem não afeta em suas experiências de gênero como mulheres trans.
Of course there are individual differences. But there are always individual differences. We speak of ‘women’s issues’ knowing that while there are individual differences, the truth of human history is that women as a group have been treated as subordinate to men.
Claro que essas são diferenças individuais. Mas são sempre diferenças individuais. Nos falamos sobre “pautas das mulheres” sabendo que ainda que existam diferenças individuais, a verdade da história humana é que mulheres, como um grupo, têm sido tratadas como subordinadas aos homens.
And we speak of male privilege acknowledging that individual men differ but that men as a group are nevertheless accorded privileges by the world.
E nós falamos sobre privilégio masculino reconhecendo que homens individuais diferem, mas que como um grupo, contudo, o mundo concede privilégios aos homens.
I think of feminism as Feminisms. Race and class shape our experience of gender. Sexuality shapes our experience of gender. And so when I say that I think trans women are trans women, it is not to diminish or exclude trans women but to say that we cannot insist — no matter how good our intentions — that they are the same as women born female.
Nor do I think that we need to insist that both are the same.
Eu penso o feminismo como Feminismos. Raça e classe moldam nossas experiências de gênero. Sexualidade molda nossas experiências de gênero. E então quando eu digo que acho que mulheres trans são mulheres trans, isso não é para diminuir ou excluir mulheres trans, mas para dizer que não podemos insistir — não importa o quão boas sejam nossas intenções — que elas são as mesmas que mulheres nascidas mulheres.
Nem acho que precisamos insistir que ambos são a mesma coisa.
To acknowledge different experiences is to start to move towards more fluid — and therefore more honest and true to the real world — conceptions of gender.
Reconhecer as diferentes experiências é começar a nos mover em direção a mais fluidas — e com isso mais honestas e verdadeiras em relação ao mundo real — concepções de gênero.
(…)
Maria Clara Araújo
Um dos maiores ensinamentos que o feminismo negro acrescentou na minha formação política enquanto mulher feminista, foi ter desmistificado a existência de uma representação universal sobre a mulheridade. Permitindo que me fosse possível reconhecer a pluralidade que ser mulher carrega consigo no interior não só da terminologia, mas da própria vivência em si. Entender os processos pelos quais a categoria “mulher” passou – principalmente, no feminismo -, perpassa reconhecer a importância de conseguirmos visualizar o quanto a própria identidade se situa dentro de uma relação de poder. Afinal, desde a primeira onda existem relatos que visibilizam o quanto “mulher”, por muito tempo, foi um termo/categoria/identidade apenas legítima à aquelas que eram dignas de tal – compreendendo qual sentido de “dignidade” e/ou civilidade estou tomando como análise.
Portanto, sub-categorizar mulheres trans partindo de uma ótica biologizante e que reproduz um discurso de cunho transfóbico que não só afirma termos nascido homens – ignorando todas as discussões que transfeministas estão propondo ao discorrer sobre naturalização do sexo e gênero enquanto perfomatividade -, como também equivocadamente supor que nós já desfrutamos de privilégios masculinos – afirmando existir uma similaridade entre nossas experiências e a de homens cis -, foi o bastante parar concluir o quanto Chimamanda ainda carece de leituras e contato para com as vivências trans, de modo que ela se abra para nos escutar e poder, a partir disso, traçar outros viés de leitura sobre nossa experiência de vida.
Laverne Cox
Texto originalmente publicado no twitter
I was talking to my twin brother today about whether he believes I had male privilege growing up. I was a very feminine child though I was assigned male at birth.
Estava conversando com meu irmão gêmeo hoje sobre se ele acredita que tive privilégios masculinos enquanto crescia. Eu era uma criança muito feminina apesar de ter sido designada como homem ao nascer.
My gender was constantly policed. I was told I acted like a girl and was bullied and shamed for that. My femininity did not make me feel privileged.
Meu gênero era constantemente policiado. Me foi dito que eu agia como uma garota e fui perseguida por isso. Minha feminilidade não fez que me sentisse privilegiada.
I was a good student and was very much encouraged because of that but I saw cis girls who Showed academic promise being nurtured in the black community I grew up in Mobile, Ala.
Eu era uma boa estudante e fui muito encorajada por isso mas vi garotas cis que mostraram promessas acadêmicas sendo incentivadas na comunidade negra onde cresci em Mobile, Alabama.
Gender exists on a spectrum & the binary. Narrative which suggests that all trans women transition from male privilege erases a lot of experiences and isn’t intersectional. Gender Is constituted differently based on the culture we live in.
Gênero existe no espectro & no binário. Narrativas sugerindo que todas as mulheres trans transicionam do privilégio masculino apagam muitas experiências e isso não é interseccional. Gênero é constituído diferentemente baseado na cultura em que vivemos.
There’s no universal experience of gender, of womanhood. To suggest that is Essentialist & again not intersectional. Many of our feminist foremothers cautioned against such essentialism & not having an intersectional Approach to feminism.
Não existe experiência universal de gênero, de mulheridade. Sugerir isso é essencialista & de novo não interseccional. Muitas de nossas mais proeminentes feministas nos preveniram contra esse essencialismo & de não ter uma aproximação interseccional do feminismo.
Class, race, sexuality, ability, immigration status, education all influence the ways in which we experience privilege So though I was assigned male at birth I would contend that I did not enjoy male privilege prior to my transition.
Classe, raça, sexualidade, capacidade, status de imigrante, educação, tudo isso influencia como experimentamos o privilégio. Então apesar de ter designada homem ao nascer, contestaria que gozava do privilégio masculino antes da minha transição.
Patriarchy and cissexism Punished my femininity and gender nonconformity. The irony of my life is prior to transition I was called a girl and after I am often called A man. Gender policing & the fact that gender binaries can only exist through strict policing complicates the concept gendered privilege & That’s OK cause it’s complicated.
Patriarcado e cissexismo puniram a minha feminilidade e não confirmação de gênero. A ironia da minha vida é que antes de transacionar eu era chamado de garota e depois sou muitas vezes chamada de homem. O policiamento do gênero & o fato de que o binário só pode existir através do estrito controle problematiza o conceito de privilégio e gênero & tudo tudo bem porque é complexo.
Intersectionality complicates both male and cis privilege. This is why it is paramount that we continue To lift up diverse trans stories. For too many years there’s been far too few trans stories in the media.
Interseccionalidade problematiza tanto o masculino quanto o privilégio cis. É por isso que é capital que continuemos a por em evidência diversas histórias trans. Por muito tempo houve pouquíssimas histórias trans na mídia.
For over 60 years since Christine Jorgensen stepped off the plane from Europe and became the first internationally known trans woman the narrative about trans folks in the Media was one of macho guy becomes a woman.
Há mais de 60 anos desde que Christine Jorgensen colocou seus pés num avião vindo da Europa e se tornou a primeira mulher trans internacionalmente conhecida, a narrativa sobre pessoas trans na mídia é aquela do macho que se transforma em mulher.
That’s certainly not my story or the stories of many trans folks I know. That narrative often Works to reinforce binaries rather than explode them.That explosion is the gender revolution I imagine,one of true gender self determination.
Essa certamente não é minha estória ou de muitas pessoas trans que conheço. Essa narrativa geralmente trabalha para reforçar o binário ao invés de explodir com ele. Essa explosão é a revolução de gênero que imagino, aquela da auto determinação verdadeira de gênero,
Ana Flor Fernandes Rodrigues
Texto originalmente publicado em seu perfil no facebook
Depois de assistir o vídeo, visualizei e analisei que Chimamanda subcategoriza mulheres trans e, claro, isso é transfobia. O que me fez elencar três pontos:
1 – Se Chima nos coloca nesse determinado lugar, é lógico que ela tem um contato um tanto quanto limitado sobre nossas narrativas, estudos, histórias, e acabou se equivocando. Esse posicionamento precisa, urgentemente, ser revisto. O que nos permite sugerir que uma das soluções desta problemática seria ler transfeministas, ampliando seu olhar sobre nossas identidades e construções que não são iguais.
2 – Sobre o feminismo radical: feministas radicais nunca leram Chimamanda Ngozi Adichie. Muitas delas nem sabiam quem era. Então vamos nos importar menos com esse determinado grupo que tanto nos destila ódio e violências, e focar mais em nós mesmas, criando diálogos possíveis para que essa situação possa ser resolvida de forma saudável. Compreendendo o espaço que Chima ocupa e sua vasta contribuição para o feminismo. Ela não é nossa inimiga.
3- Essa posição de Chimamanda parece ir contra o que ela propõe com suas linhas de pesquisas. Logo, devemos questiona-la a partir dessa ótica proposta em suas escritas. Visando que nós, enquanto mulheres, somos diversas. Respeitando nossas particularidades e singularidades. Não devemos cometer o mesmo erro. Muito pelo contrário: devemos fazer diferente.