O projeto multilinguagens Isto Não É Uma Mulata ocupará o Teatro Gamboa Nova durante o Mês de Novembro com o solo performático da atriz Mônica Santana e exposição de seus desenhos, poemas e o ensaio visual, realizado com a fotógrafa Andrea Magnoni. As apresentações acontecem de 6 a 21 de novembro, sextas e sábados, às 20h (com sessões extra nos dias 20 e 21 de novembro, às 18h).
Partindo da famosa frase proferida por Gilberto Freyre “Branca para casar. Mulata para fornicar. Negra para trabalhar”, a artista tece obras que questionam as formas de representação da mulher negra: seja a mestiça hipersexualizada, de formas exuberantes e sempre disponível para o sexo, seja a negra escura para o serviço braçal. É com o ponto de partida de ironizar a imagem canonizada da mulher negra nas artes e na mídia, visitando diferentes referências e criando novos discursos que a performer, atriz e educomunicadora Mônica Santana desenvolve o projeto multilinguagens Isto Não é Uma Mulata, contando com a produção da Gameleira Artes Integradas.
Num entrelugar da performance e do teatro, o solo Isto não é uma Mulata trabalha numa zona de ironia, visitando clichês na representação da mulher negra, por vezes, reduzida ao trabalho doméstico, à sensualidade da passista carnavalesca, ao corpo exuberante. Também entram em cena, referências da cultura pop, da música, criando novas estratégias para um exercício de teatro político, onde o movimento, a dança e o paradoxo são recursos explorados, sem empregar didatismo.
O ensaio fotográfico explora os ingredientes do solo cênico, reforçando o jogo de signos, ironia, provocações sobre estratégias de embranquecimento e clichês. A produção ficou por conta de Mônica Santana, que performa nas fotos e a captura de imagens foi de Andrea Magnoni, fotógrafa cujo trabalho dedica-se às temáticas ligadas à diversidade.
Na exposição, o público poderá conhecer poemas e desenhos feitos pela artista, partes integrantes do processo criativo e das reflexões sobre as temáticas abordada no espetáculo: textos e imagens dialogam criando texturas e ironias no questionamento em torno da desconstrução da representação tradicional pela produção de novas imagens e discursos de si. Mônica Santana é atriz, jornalista e também envereda pelas artes visuais e da palavra, trazendo para Isto não é uma mulata sua veia de dramaturga e performer, mas também o olhar crítico de pesquisadora de artes cênicas.
O Blogueiras Negras conversou com Mônica Santana sobre o espetáculo, a arte e negritude, acompanhe.
Blogueiras Negras : Quando e como surgiu a ideia do projeto?
Mônica Santana: Surgiu durante a conclusão do meu mestrado em Artes Cênicas, quando comecei a refletir sobre a importância de construir outros discursos sobre a existência da mulher negra, buscar me tornar presente e não representada. Eu fazia uma pesquisa sobre Clarice Lispector e construí um solo teatral em diálogo com a obra dela. Percebi que muitas questões que me afetavam não poderiam ter conjunção com a personagem que eu construía, uma mulher branca, de classe alta do Rio de Janeiro. Segui com a pesquisa, mas percebi que meu corpo tinha outros discursos, históricos, existenciais e políticos que precisavam ser tecidos. Daí veio o projeto.
BN: O que significa pra ti fazer parte de todo o processo criativo do Isto Não É Uma Mulata?
MS: É uma grande alegria e também sentimento de criação. Eu já fiz parte de grupos de teatro e saí quando percebi que a minha potência está em criar meu próprio discurso, meu próprio texto e colocar meu corpo inteiro engajado nessa criação. Com meu primeiro solo, Aprendizagem, foi assim e acho que esse processo se radicalizou em Isto Não É Uma Mulata, por ter me permitido expor poemas, ilustrações, posar para um ensaio fotográfico e assumir um estado de corpo diferente daquele do primeiro trabalho. Mas o trabalho me permitiu agregar pessoas em volta, artistas que apostaram na temática e deram seu trabalho, sem retorno financeiro até então. Estou muito contente de ter conseguido agenciar essas pessoas em volta do meu projeto, cooperando e criando junto.
BN:É difícil estar nessa posição num mercado cultural como é o de Salvador?
MS: É difícil, mas digo que foi mais fácil do que ser atriz. Se eu fosse simplesmente atriz, já não estaria fazendo teatro há mais de cinco anos. Não sou o perfil de atriz que se convida pra trabalhar, que os diretores lembram. E nem temos um mercado com esse tipo de característica em Salvador. Se eu não fosse autora dos meus projetos, não tinha ficado por tantas temporadas em cartaz com meu primeiro solo, que estreei em 2011 e apresentei até 2014. Tampouco estaria agora aqui, conversando com vocês sobre meu novo projeto. Entendi que se eu quero ser artista, tenho que ser autora e empreendedora da minha arte. Embora ainda não tenha um retorno de sustentabilidade desses dois projetos, minha aposta sempre foi a da autoralidade e da expressão de um discurso político e existencial que considerava potentes. Então, sim, é difícil, mas ninguém nunca falou que seria fácil. Não há fácil quando se resolve ser artista.
BN:Quais foram os desafios enfrentados por você?Tens alguma história de racismo e preconceito durante o processo pra contar?
MS: Olha, não. Eu tive pelo contrário muita receptividade, desde o compartilhamento das fotos do ensaio fotográfico, que foi a primeira ação do projeto compartilhada. Fiquei inclusive assustada com a imensa quantidade de compartilhamentos e retornos. Percebi que havia uma urgência em tratar do racismo e da sua interseccionalidade com o machismo/sexismo de uma outra forma. E até o momento tenho recebido muito estímulo, tanto de mulheres negras que assistem e se percebem tocadas, a mulheres brancas que apoiaram o projeto trabalhando e mobilizando outras, enfim. Tudo ainda é muito recente, tendo em vista que estreei dia 6 de novembro e as apresentações ainda contam com um público muito pequeno, em média 20 a 30 pessoas. Mas já me alegrei com a receptividade e o envolvimento das pessoas com os temas do projeto.
BN: Como você enxerga essa “dualidade” que é ser mulher negra hipersexualizada e ao mesmo tempo rejeitada nos relacionamentos?
MS: Enxergo com dor, porque senti isso na pele por muito tempo. É algo doloroso, que procuro trazer de forma política e sensível na peça. Essa solidão, essa feminilidade que é sufocada e estilhaçada, colocada num outro lugar. Cada vez mais que leio, que estou entre mulheres negras, que me aprofundo na discussão, me sinto mais forte e menos fragilizada pelas rejeições e fortalecida num ambiente de cooperação. Tratar desses temas não é fácil, porque o âmbito do amor e da afetividade parece que não é penetrado pela sociedade e pela política – pelo menos nas nossas ilusões. E conversar com outras mulheres sobre isso, tanto pior com os homens, é muito difícil, pois as pessoas logo atribuem suas pontuações a questões como complexos, recalques – que são bem legítimos diga de passagem. É sempre um exercício exaustivo, mas me disponho a conversar sobre. Acho que é muito poderoso podermos falar de amor, afetividade, solidão, numa perspectiva política.
BN: O que você sentiu na estreia? Como o público lidou com seu espetáculo?
MS: Foi muito bom. Sentimento de realizar um desejo, de me sentir acolhida e abraçada. Estreia é sempre um público de amigos e pessoas próximas, que vão dispostas a apoiar. Mas mesmo nos experimentos que fiz, apresentando pra públicos diversos, senti um acolhimento e uma potência do trabalho.
BN: Quais são os próximos passos do projeto? Você pensa em viajar com ele?
MS: Desejo muito rodar com o projeto, contudo , sem dúvida isso só é viável com apoio financeiro. Embora seja uma ação bastante enxuta, envolve-se custos de produção e uma equipe mínima (operação de luz, operação de som, transporte de cenário entre outros), que dificultam fazer apresentações sem nenhum tipo de apoio financeiro. Mas estou esperançosa, acho que os caminhos estão abertos e as coisas vão rolar. Já temos uma primeira apresentação fora de Salvador, no município de Jacobina, dentro de um evento acadêmico da Universidade Estadual da Bahia. Espero que seja a abertura de outras oportunidades.
BN: O que você pensa sobre pessoas não negras dirigindo, criando e produzindo histórias sobre nós?
MS: Olha, eu não sou propriamente contra. Não mesmo. Eu acredito que podemos criar e trabalhar juntos. Acho que é potente se pensar em ponto de vista – qual é o lugar de fala de cada um. Como esse diretor, diretora se coloca. Eu conheço dramaturgos, atores, diretores, diretoras sensíveis, comprometidos politicamente. Mas sem dúvidas, acredito que vivemos um tempo onde é valioso que a mulher negra fale por si, a partir da sua experiência. Que o dramaturgo gay produza sua obra que reflita sua condição de existência. Que cada um defenda e engendre obras que venham carregadas da sua experiência e possam gerar identificações. Acho que é um tempo que a presença de criadores negros e negras poderá alterar os velhos discursos e formas de representação engessados, que nos desumanizaram. É um tempo de reinventar os discursos sobre nós, por nós e não pelo outro. Talvez com o outro. Mas não mais pelo.
BN: Sabemos da sua opinião sobre Sexo e As negas, por exemplo. O que você considera de positivo e de negativo naquela produção?
MS: Menina, eu não assisti (CREIA!). Eu até devia ter assistido. Mas não assisti. Por tempo mesmo, por correria, por estar envolvida com outras coisas, sei lá. Mas eu procurei ter uma visão mais moderada naquela discussão toda. Sou uma pessoa bastante crítica e acho que é válido tecer questionamentos, avaliações, enfim… e acho que não devemos acreditar que sempre vamos ter consenso, que vamos concordar todas com tudo. Talvez por ser comunicadora, saber como as coisas se engendram do outro lado da moeda. Por ser atriz e saber da importância da abertura de espaço para intérpretes negras. Eu acho que houve um grande erro com o nome daquela série, logo de saída. Acho que ele por si já causou antipatia, desconforto. E a reação foi bastante grande antes mesmo da obra estrear. Eu acho que não há um problema numa personagem ser empregada doméstica – ou queremos produtos de comunicação onde só negras com nível superior serão apresentadas? Meu problema é qual é o grau de humanização dessa personagem. Ela tem vida – família, amigos, sentimentos antagônicos. Ela é aquilo que chamamos em dramaturgia de um personagem complexo? Ou ela é só um tipo – aquele ser cujas características são estereotipadas, simplificadas, sem traços de particularidade. Aí é que está a questão ao meu ver. A mulher negra foi poucas vezes abordada de forma humanizada, complexa. Tanto pior sua sexualidade que sempre esteve a serviço, como todo seu corpo. Mas se tivermos uma obra, que essa mulher tenha uma sexualidade potente – como vemos em Annelise Keating, de How To Get Away With Murder (personagem de Viola Davis, na série da produtora negra aclamada Shona Rhimes), que ela lida com essa sexualidade como poder, seja para o bem ou para o mal – não vejo problema. Mas enfim, acho que o movimento todo foi potente. Somado ao que rolou esse ano sobre o tema do blackface. Acho que tem uma potência em se discutir, pensar, refletir. Acho que precisamos mais é ter roteiristas negrxs, produtorxs de elenco negrxs, diretorxs negros. Isso é que vai mudar a ordem das coisas.
BN: Você considera que as produções soteropolitanas (em especial) contemplam pautas e sentimentos em relação as mulheres negras? Quem te inspirou nesse sentido?
MS: Eu durante muito tempo tentei me livrar do fardo de ter que tratar do que estou tratando em Isto Não É Uma Mulata. Eu tinha um incômodo de termos que falar sobre racismo, termos que falar sobre opressão racial, de gênero. Eu queria poder falar de outras coisas… talvez fosse ingênua. Acho que precisei fazer essa travessia agora. De colocar os dedos nas feridas, do meu modo. E continuar caminhando, sei lá para qual trabalho no futuro. Eu acho que temos grupos importantes, reconhecidos, fazendo trabalhos sério como o Bando de Teatro Olodum, o NATA (tenho que procurar a sigla), admiro o trabalho de uma performer negra poderosa, Michelle Matiuzzi. Mas acho que a minha inspiração veio muito mais fortemente das leituras como Fanon, Stuart Hall, Gatri Spivak e da música (especialmente Nina Simone e Beyonce), de outras referências estéticas, onde a força da ironia, da crítica emergem do humor, da crueldade. Então, outros artistas, que não necessariamente são negros, tiveram influencia no meu processo de criação.
BN: Você procurou envolver mulheres negras na sua produção? Houve essa preocupação?
MS: Procurei envolver, mas nem sempre foi possível por agendas e aqueles desencontros que rolam na vida. Como foi um projeto realizado sem recursos, tudo ficou muito na base de quem colou, chegou junto, ajudou e se dispôs a contribuir. Então, a equipe de criadores que se envolveu na produção, cenário, figurino, direção musical, iluminação, design, é toda muito mista e composta por artistas bastante politizados em suas trajetórias. Com diferentes trajetórias, estéticas e origens. A direção musical entendeu o desejo que eu tinha de que o trabalho pudesse ter a voz de várias mulheres negras e propôs algo que achei muito bonito, colher depoimentos de muitas mulheres e colocar isso no solo. Assim, quando a peça termina, o público sai ouvindo vários depoimentos de mulheres negras, algumas amigas queridas e admiradas, outras mulheres que não conheço, mas entraram no barco. E ouvi-las sempre me emociona, porque me dá a clareza de que estou junto de uma multidão. E não só.
BN: No teaser de “Isto não é uma mulata”, queima-se – entre livros e revistas – o livro Casa Grande Senzala, de Gilberto Freire. O que Casa Grande e Senzala representa hoje para as mulheres negras? Por quê e o que representa queimar esse livro?
MS: Pois é. Gilberto Freire é um autor dos mais importantes, especialmente por ser um dos pensadores responsáveis pela criação de um imaginário brasileiro e fundamentar a lógica da democracia racial, ao qual a identidade nacional foi fundada. Cito na peça a famosa frase “branca pra casar, preta pra trabalhar e mulata para fornicar”, faço um longo agradecimento a diversos personagens importantes na invenção da mulher negra no Brasil. Ou na nossa invisibilidade. Eu tive vontade de queimar várias outras coisas… cânones da metafísica e do pensamento ocidental, outros livros…mas achei que com Monteiro Lobato e Gilberto Freire minha fogueira já teria material suficiente. Pra mim significa: eu não aceito essa invenção, eu não aceito esse discurso que criaram pra mim. Muito obrigada, mas posso criar os meus próprios textos.
Serviço
Isto Não É Uma Mulata – Solo Performático e Exposição
6 a 21 de novembro, às sextas e sábados, às 20h (sessões extra, nos dias 20 e 21 de novembro)
Ingressos: R$20,00(inteira) e R$10,00 (meia entrada)
Isto Não É Uma Mulata – Exposição com Ilustrações, Poemas e Ensaio Fotográfico
06 a 21 de Novembro, no Foyer do Teatro Gamboa Nova
Aberto a visitação de quarta a domingo