2014 foi definido por alguns (e algumas) como o “ano das mulheres na literatura contemporânea”. Isso se deve ao fato do ano ter sido marcado pela campanha virtual #readwomen2014, que não tardou muito para chegar aqui no Brasil. O # trouxe, ao longo do ano, inúmeras postagens e links em blogs, twitter, facebook, com resenhas e dicas de escritoras injustamente mal divulgadas que mereciam a nossa atenção.
Como afirmou Luisa Geisler em artigo publicado n’O Globo, essa iniciativa foi um importante passo para o reconhecimento de um problema estrutural: o machismo no meio literário. Trata-se, obviamente, de um momento crucial para a visibilidade de um obstáculo que atravessa séculos, como bem demonstrou Virginia Woolf no ensaio Um teto todo seu. No entanto, aproveitando a proximidade do dia 25 de julho (que marca o dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha), é necessário pontuar que o mundo é diferente da hashtag pra cá.
Lendo algumas notícias sobre a repercussão da campanha #leiamulheres2014, me deparo com um depoimento intrigante. Em entrevista, uma certa agente literária, numa de suas elucubrações sobre a escassa presença de mulheres nas antologias literárias, afirma que “a mulher é mais literariamente discriminada do que o negro”. A nós, feministas negras e interseccionais, a frase salta aos olhos: as categorias “a mulher” e “o negro”, colocadas dessa maneira simplista e estanque, além de serem frágeis sob uma perspectiva teórica, dão a falsa impressão de que tais identidades jamais se cruzam, elevando ainda mais o grau de invisibilidade da categoria “mulher negra” – ou melhor: mulheres negras. Não é à toa que, na escola, as poucas mulheres negras que tivemos contato na literatura ocupavam espaços subalternizados, se destacando enquanto objetos, e não enquanto sujeitos. É o caso da personagem Rita Baiana d’O Cortiço, de Aluísio Azevedo; as neguinhas que tombavam no areal com os Capitães da Areia, de Jorge Amado; a Irene preta do poema de Manuel Bandeira, etc.
Se tivéssemos de fazer um ensaio sobre a condição da mulher negra escritora no Brasil, encarnada numa espécie de “Virginia Woolf das quebradas”, teríamos de recorrer, incontestavelmente, à obra de Carolina Maria de Jesus. Em seu Quarto de Despejo – que não por acaso, assim como o livro de Woolf, também evoca, no título, um certo espaço físico – a autora dá pistas para pensar nesses obstáculos enfrentados pelas pioneiras negras que assumiram o desafio da escrita. Afinal, em seus escritos, De Jesus retoma constantemente seu projeto literário, afirmando-se detentora de “alma aristocrática” e “linguagem clássica”, numa metalinguagem que nos conduz a um espaço diferente daquele que a crítica hegemônica a legou, esse espaço exotista da favelada-que-até-sabia-escreve
Se para a escritora inglesa branca a vida doméstica era um fardo que cerceava os planos de carreira de suas contemporâneas, o lugar das mulheres negras dos tempos e contextos de Carolina era bem outro. Olhando para o contexto do “fenômeno Carolina” (como bem recuperado nos ensaios presentes em Onde estaes felicidade?), que, literal e literariamente foi do Quarto de despejo à Casa de Alvenaria, alcançando uma projeção social graças ao recorde de vendas de seu livro, podemos observar que o espaço da mulher negra que escreve é ainda mais limitado. Quando Carolina sai da favela (conquistando o almejado “teto todo seu”) e goza, durante um curto período de tempo, os espaços de classes abastadas, sua produção deixa de ser interessante. Frequentando “o outro lado da ponte”, Carolina denuncia em Casa de Alvenaria as desigualdades sociais a partir do novo espaço que ocupa. No entanto, não ganhou a mesma projeção do livro de estreia.
E era exatamente disso que se tratava a segunda parte do depoimento dado pela tal agente literária que citei no começo desse texto. Segundo a entrevistada, ocorria, dentre os leitores, algum tipo de interesse pela temática da favela e da violência urbana, argumento que sustenta o fato da “mulher ser literariamente mais discriminada que o negro”. Ou seja, reside, no senso-comum, a equação negro/a = miséria/exploração, gesto que parece ser, de certa forma, capitalizado como nicho literário, e que na análise da tal agente acaba revelando uma recusa às inúmeras dimensões das subjetividades negras, que vão além da repetição da miséria do possível. Algo parecidíssimo ao que ocorreu com a autora de Casa de Alvenaria.
De fato, há poucas mulheres negras sendo publicadas em grandes editoras. Segundo a pesquisa de Regina Dalcastagné, intitulada Literatura Brasileira Contemporânea – Um território contestado, os autores são, em sua maioria, brancos (93,9%) e homens (72,7%). Tal constatação também é comprovada quando damos uma olhada na programação da FLIP desse ano, que homenageou o modernista Mário de Andrade – curiosamente, um intelectual negro.
Sabemos que a literatura assume um espaço de prestígio que, como apontou Delcastagné, pode garantir voz a uma coletividade, conferindo importância histórica e consolidando a identidade de uma nação. Se aqueles que a produzem estão limitados a um perfil homogêneo – no caso, homens brancos -, é esperado que estes apresentem perspectivas que reiteram o status quo, da mesma forma ocorre em relação ao universo apresentado por esse perfil homogêneo e hegemônico, parecido com eles, restrito a protagonistas brancos, com raros personagens negros.
Reconhecer que o racismo, aliado ao machismo, conforma uma opressão cruzada que também é estrutural é um grande passo. No entanto, é preciso ir além: enfrentar os espaços de poder de modo a desafiar o/a leitor/a a abalar a sua própria zona de conforto e a confrontar suas leituras de mundo, assim também como é preciso nos fortalecer enquanto leitoras e, principalmente, como autoras.
P.S. ou dicas de leitura: Escolhi para a imagem que ilustra esse texto seis autoras negras da literatura brasileira contemporânea, de variados gêneros das mais diversas filiações – e das quais eu gosto muito. De cima pra baixo, da esquerda para a direita, são elas:
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Ana Maria Gonçalves – autora de Um defeito de cor romance de fôlego agraciado pelo prêmio Casa de Las Américas na categoria “literatura brasileira” (e também é uma blogueira negra);
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Conceição Evaristo – poeta e prosadora, é uma das mais importantes escritoras da literatura negra brasileira. Escreveu o romance Ponciá Vicêncio, dentre outros;
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Miriam Alves – também poeta e prosadora, publicou seus poemas nos Cadernos Negros, tem sido muito discutida internacionalmente enquanto literatura afrobrasileira e feminina;
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Ana Paula Maia – além de ser a escritora favorita da minha adolescência, foi uma das pioneiras na literatura via web, lançou o primeiro folhetim pulp da internet brasileira. É autora de O habitante das falhas subterrâneas, Carvão Animal, etc;
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Elizandra Souza – poeta e agitadora cultural, uma das escritoras mais marcantes do cenário marginal/periférico. Foi uma das organizadoras da antologia Pretexto de mulheres negras. Publicou seus poemas no livro Águas de Cabaça;
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Nina Rizzi – é poeta, tradutora e minha mais nova paixonite literária. É autora de Tambores pra N’Zinga e Duração do deserto.
Aqui eu também citei:
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O artigo de Luisa Geisler publicado n’O Globo sobre o #leiamulheres2014;
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O ensaio Um teto todo seu, de Virginia Woolf;
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A matéria “Escassez de mulheres no mundo editorial é questionada”, também publicado n’O Globo;
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Quarto de Despejo e Casa de Alvenaria, de Carolina Maria de Jesus;
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O e-book Onde estaes felicidade?, altamente recomendado, que pode ser baixado neste link;
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A pesquisa de Regina Dalcastagné e seu respectivo artigo sobre o tema publicado no livro Africanidades e relações raciais, organizado por Cidinha da Silva;