Quando se pensa feminismo, se percebe o rastro do pensamento eurocêntrico presente nas muitas falas espalhadas por todo o Ocidente. Não se poderia ser diferente na América do Sul, se tratando de um espaço territorial sangrado e usurpado ao longo dos séculos. A existência, a cosmovisão, a vida de todos os grupos que ocupavam de modo sinuoso seus respectivos territórios, foi renegada pelo colonizador.
Juntamente à tal fato, temos os africanos em diáspora que tentam, de modo enfático, construir e possibilitar uma ressignificação de território através de sua cultura, sua oralidade e suas práticas guardadas ao longo do tempo. Os povos originários, silenciados por séculos e dizimados de modo incontestável, resistiram da mesma forma, tendo seu espaço territorial como principal reivindicação ao longo do plano desenvolvimentista nacional, que visava a integração.
“Dizem pra gente que nós devemos ser integrados, integrados a quem? A que exatamente? Nós mulheres indígenas, temos muito a contribuir, a somar e a ensinar. Não queremos integração!”, destacou Sônia Guajajara em sua fala de abertura da primeira Marcha de Mulheres Indígenas, tendo em vista que, mesmo após 500 anos de ocupação, a resistência dos povos originários se faz presente e mais que nunca, necessária.
Tal resistência tem a mulher como raiz fecunda, que mesmo depois de todo o genocídio, permanece interessada em manter-se. Ao contrário do que se esperava, os povos indígenas não estão em extinção, não estão no passado. A proposta política que se pensa a partir da perspectiva indígena, é idealizada e projetada para um equilíbrio entre o humano e a natureza, elemento fundamental para se pensar um possível futuro.
Nesta perspectiva a ancestralidade permanece intacta, visto que os ciclos da natureza são continuados e a memória oral dos povos foi preservada de modo equivalente. Após a constituição de 89, alguma estabilidade foi concedida aos povos originários, no entanto, o atual desgoverno ameaça tal equilíbrio, se fazendo necessário a ocupação de espaços de luta.
“Ninguém vai te ensinar a lutar, você sabe por si só, você percebe. Tua vivência te possibilita ter consciência de que, para se manter vivo é preciso se aliar. Nosso movimento começou nos Andes, indo de comunidade em comunidade, levando muita porta na cara, muito não e percebendo que se existia dúvidas acerca da prática eficaz do dito “feminismo europeu”, enfatiza Julieta Paredes, Boliviana da Etnia Aymara.
SOBRE FEMINISMO COMUNITÁRIO
Paredes conduziu uma roda de conversa sobre “Feminismo Comunitário” na tarde deste domingo. Muitos militantes e estudantes indígenas, pesquisadores e visitantes do acampamento, marcaram presença na atividade. Julieta, com sua voz incisiva, suas expressões expansivas e sua fala convicta, mapeou o surgimento do feminismo e destacou a linha do tempo colonial que neutralizou as ações das recém invadidas terras americanas.
A partir de 2006, Paredes inicia sua saga em função da construção e mobilização de um pensamento decolonial para um feminismo comunitário, que tem como principal mola propulsora a descolonização do tempo ameríndio. Segundo ela “vivemos em um mundo hegemonicamente eurocêntrico, precisamos posicionar nossos corpos; essa deve ser uma estratégia de resistência, mas para além do físico, precisamos ocupar o território simbólico das palavras”.
Ao longo da roda de conversa, foi possível compreender que o respeito às diferenças é a base para compreender o feminismo comunitário, visto que cada ser humano, cada povo tem sua biografia de luta. O objetivo desta nova vertente do feminismo, partindo da experiência boliviana, é intensificar a noção de resistência a partir da unificação de lutas em um território.
Para Julieta, o pensamento revolucionário eurocidental na América Latina é binário, mas o pensamento indígena é muito amplo, não é quem é amigo ou inimigo e sim quem está disposto a construir soluções para o futuro partindo de uma vivência do presente. Qual seria então os passos para a descolonização desses corpos, dessas mulheres?
“Eu me inspiro pra falar de feminismo comunitário a partir das lideranças indígenas do Brasil, mas tendo o meu lugar de fala a partir do povo Pankararú. É de onde eu me oriento e a partir de onde eu conheço outros povos”, destaca Elisa Pankararú Mestranda da Universidade Federal de Pernambuco.
Para Pankararú, o feminismo comunitário se destina à comunidade, todo aquele que está em comunidade. Mas se pararmos para refletir a essência dele é indígena, e se divide em cinco eixos: corpo, tempo, espaço, movimento e memória.
Em sua fala durante a marcha, Cris Pankararú destacou que “os filhos da colonização ficaram ou misturados ou descendentes”, tal frase ganha força ao se perceber que o silenciamento é uma das ferramentas utilizadas pelo estado para a não afirmação de muitos. Uma pergunta recorrente é se para este quadro, existe reversão. Para a Amazonense Inara Nascimento, do povo Sateré Mawé, doutoranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, foi no feminismo que ela encontrou uma base sólida para reconstruir o percurso de volta às suas origens.
“Viver na cidade era viver no silêncio e durante todo o meu percurso acadêmico, posterguei esse encontro com as minhas raízes e confesso que isso me machucou durante muito tempo. A cidade de Manaus é uma cidade feita por sangue indígena e quase não conversamos sobre isso.”, destaca Inara, que destaca a importância do feminismo para o seu processo de retomada étnica.
Encontrar um lugar, a partir de onde se quer observar e vivenciar o mundo é uma demanda existencial, todos precisam desse fio condutor, caso contrário não se existe sentido no caminhar. “Os espaços feministas naturalmente são anti-racistas, pensando o contemporâneo. Desta forma é possível aglomerar as mais variadas lutas de mulheres indígenas, negras, lgbt+ e também de mulheres brancas, desde que essas repensem sua branquitude”, finaliza Inara que destaca a importância do feminismo que luta junto com as mulheres indígenas.