Todo mundo fala o quanto eu sou forte, mas isso foi, por muito tempo, um empecilho para que muitos me acolhessem nos momentos de dor. Então, vivi muito tempo sem conseguir chorar, mesmo em um estado de agonia extrema. Recentemente, diante do racismo acadêmico, fui surpreendida por mim mesma. Primeiro, consegui compartilhar com outras pessoas sobre a dor que eu estava sentindo, sobre a situação que estava afetando minha saúde mental e física. Abandonei a ideia de que era melhor sofrer calada e de que era preciso eu performar força em situações quase sub-humanas. Então, olhei para os cacos que as pancadas racistas me deixaram como quem se via pela primeira vez.
Aos poucos, pessoas foram me ajudando a recolher, tanto negras como brancas, algumas de longa data de convivência, outras mais recentes. Algumas não entendiam muito bem o que eu estava sentindo, mas mesmo assim acolheram. Quando percebi, um quilombo gigantesco de afetos se formou ao meu redor. Aqueles que me conheciam há muito tempo não me pediram para ser forte, apenas me lembraram de quem eu sou, do que me fez ser quem sou e da minha trajetória até aqui. As convivências mais recentes cozinharam para mim, sacudiram-me da cama, mandaram mensagens de bom dia repletas de afeto. Além disso, ajudaram-me na busca por atendimento psicológico que pudesse me erguer do poço em que fui empurrada e não consegui me erguer imediatamente.
Apoios de toda a ordem, eu, pela primeira vez, pude me permitir chorar, e que bom que chorei. Meu corpo doía pelas dores emocionais de ser uma mulher preta acadêmica, porém, o amor dessas pessoas anestesiou. Cada dia, realmente, um dia de cada vez, eu me vi assumindo a minha reexistência. A escrita se tornou um meio de expurgo aquilo que me incomodava internamente e de reflexão. Pela palavra poética, consegui digerir e também vomitar o incrível mundo dos brancos, em que a branquitude sorri para nós quando nos oprime.
Com o processo terapêutico intensificado, horas e horas de diálogos apontavam-me que “o que é do outro é do outro”, enquanto eu questionava que esse outro, quando privilegiado, joga com violência nas minhas costas o que é dele com muita naturalidade. Ainda, entendi que abstrair não é baixar a guarda, e que era preciso tratar o veneno colonial constantemente expelido em nós.
Cada abraço que recebi e cada palavra que me disseram fizeram com que esse veneno perdesse seus efeitos. Diante de um quilombo, vozes embalaram meu corpo e alma para que pudesse ficar firme, para que não desistisse de estar onde, com muito custo, cheguei. A academia me adoeceu quando estava no mestrado, os egos racistas sempre tentaram me convencer de uma pequenez que tinha certeza de não possuir. Quanto mais inteligente demonstrava ser, mais agressiva era a resposta que me davam, inúmeras tentativas de me desqualificar e fragilizar. Pesquisadores brancos não querem formar pesquisadoras negras com consciência crítica, sem nos dominar. Por ser indomável, insubmissa, apesar de seguir toda a hierarquia acadêmica, sempre me vi em uma posição outsider.
E falando dessa posição… graças às leituras de Audre Lorde, Patrícia Hill Collins, bell hooks, Lélia Gonzalez, Miriam Alves, entre outras(os) intelectuais negras(os), fui fortalecendo meu poder argumentativo e percepção diante das constantes do racismo no lugar que hoje classifico como sede oficial do epistemícidio, que é a academia. Já esclareço que há exceções nesses espaços, contudo, quando realmente preocupados no combate às opressões, tornam-se ovelhas negras acuadas pelos lobos brancos da ignorância. Ler, os nossos e as nossas, energiza a mente, impede a colonização dos nossos modos de pensar, sentir e perceber o mundo.
Voltei a sorrir, e sei que meu sorriso provoca ódio em quem me quer curvada, nem que seja pela dor, pois pela subalternidade imposta não foi capaz. Poucos foram os abraços físicos que recebi, contudo, os símbolos foram vários e, graças a todos eles, reafirmo minha existência insubmissa em um curso de pós-graduação a nível de doutorado.
No fim da semana em que me permiti sentir vulnerável, fiz a pergunta: será que todas nós somos abraçadas em nosso momento de dor? É uma pergunta que talvez nunca terei resposta, mas me propus a ser o abraço diante de uma de nós em estado de dor, aquele que não exige nada e que não diz nada além do afeto sincero, e faria caber em meu peito um quilombo para acolher todas. Precisamos ser abraçadas, sem falsidade, porque o racismo não dá trégua.
Enfim, entendi que as relações sociais nos desumanizam tanto que não nos permitimos chorar, a vulnerabilidade que é normal à humanidade (humanidade no sentido não colonialista) e nos permitir pausas para nos recuperar do que nos afeta e, o mais importante, falar sobre a dor que sentimos. É relevante não nos convencermos da desumanização. Não somos “criados mudos”, não somos peças, não somos objetos, nem de análises nem de decoração.