A preocupação com o futuro dos filhos é uma tônica no desenvolvimento da personagem Rochelle, vivida por Tichina Arnold, do seriado Todo Mundo Odeia o Chris. Em diferentes episódios, Rochelle deixa entrever que é ciente sobre o futuro, praticamente traçado, dos filhos negros e filha negra, pelo contexto socioeconômico e cultural em que estavam inseridos. Em várias falas da personagem, representada como a chefa de família, àquela responsável pela formação integral; a quem cabia a preocupação com os filhos, desde aspectos simples do cotidiano à educação escolar das crianças.
A realidade da mãe do protagonista Chris é a de milhares de mulheres negras. As semelhanças estão presentes em diversos aspectos, sobretudo, no que diz respeito ao que nossos filhos terão que enfrentar ao longo da vida.
Nesse sentido, me pergunto como culpar Rochelle por querer o que considera melhor para os filhos? Mesmo que isso signifique ter que expor um deles ao ódio de uma escola, cujos integrantes são predominantemente brancos? Como culpa-la por desejar profundamente que seus filhos saíssem da condição de extrema vulnerabilidade social? Como não partilhar do sentimento de que nossos filhos precisam saber o que é certo? Precisam ser fortes?
Rochelle, em diversos momentos, reproduz uma forma de educação baseada no “faz assim ou sofrerá as consequências físicas (leia-se apanhar, levar palmadas). Importante falar que não estamos falando da crueldade como motivação para bater. Nosso foco é tratar dos aspectos que envolvem os casos em que o cuidador acredita estar fazendo o melhor ao dar uma palmada, como me parece o caso da Rochelle.
Portanto, não estamos falando de casos extremos de violência contra crianças, os quais, é importante salientar, geralmente começam com pequenas tapas e castigos, bem merecidos aos olhos de muitos adultos. Vivemos numa sociedade que acredita que é preciso fazer as crianças obedecerem “custe o que custar” e, dessa forma, estaremos educando-as para a vida.
É preciso problematizar esse modelo de educação, no contexto das famílias negras, pois ele pode indicar resquícios de uma estrutura social em que éramos punidos física e emocionalmente sempre que o senhor acreditava ter um motivo. Conforme bell hooks, precisávamos ser fortes para suportar as piores atrocidades, advindos desse direito supremo do senhor. Essas experiências dolorosas (físicas e/ou psíquicas) ainda estão à espreita do povo preto no contexto social contemporâneo.
Nesse sentido, bell hooks traz uma perspectiva histórica de como nossas relações foram se estabelecendo em uma estrutura adversa para o ato de amar uns aos outros. Estrutura que buscava, entre outras coisas, nos subjugar, nos tornar obedientes.
Seguindo o mesmo modelo hierárquico, criaram espaços domésticos onde conflitos de poder levavam os homens a espancarem as mulheres e os adultos a baterem nas crianças como que para provar seu controle e dominação. Estavam assim se utilizando dos mesmos métodos brutais que os senhores de engenho usaram contra eles. (Vivendo de Amor)
É a mesma bell hooks que nos faz um apelo, sobreviventes dessa cruel estrutura: que possamos distribuir amor aos nossos irmãos. Assim, é necessário que possamos acolher as nossas filhas e filhos, que possamos fortalecer emocionalmente as crianças negras para que, fortalecidas pelo nosso amor, possam mais seguras enfrentar as questões advindas do racismo estrutural e institucional que todo negro e negra no Brasil, necessariamente, irá se deparar em algum momento da vida.
O modelo de educação, cuja base está no diálogo, na negociação, na empatia com o “ser criança” não está vinculado à permissividade, mas ao amor que podemos demonstrar enquanto orientamos nossos pequenos, de acordo com nossa visão sobre a vida e a convivência em sociedade.
A educação deve possibilitar a reflexão e a liberdade de tomar decisões. Assim sendo, quando impomos a obediência irrestrita, baseando-se no nosso poder de adultos capazes de impor consequências, inclusive, a de sofrer castigos físicos, não estamos colaborando, possivelmente, para reforçar os fundamentos de um Estado, cujo alicerce está no seu poder coercitivo?
Nesse sentido, a pergunta que se apresenta é: podemos quebrar o ciclo que impõe a criança negra mais demonstrações de força e obediência do que de amor? Acredito firmemente que o amor pode ser justamente a força que permitirá nossas crianças a subverterem a ordem, a ir além do que fomos, a desatar laços de obediência com o sistema vigente, ao mesmo tempo em que podem estabelecer pontes de amor entre seus irmãos.
E compartilho da certeza de hooks quando diz em seu texto Vivendo de Amor “O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar!”. E é nos amando e ensinando nossos pequenos a amar que estamos subvertendo a lógica do sistema racista.
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