A Mulher branca possui uma participação considerável nos escritos literários, principalmente no que diz respeito ao período romântico de nossa literatura. Seu estereótipo de beleza predominou por muito tempo na literatura brasileira, mas, esse espaço ocupado por ela fora negado à mulher negra e, consequentemente à “mulata” (sic), visto que para tal era reservada a subalternidade.
Ao analisarmos os construtos literários, é possível identificarmos que a figura da mulher negra aparece atrelada à senzala, ou, no mais, à cozinha dos senhores de escravos. Essa limitação permanece por todo o Romantismo, porém, no Realismo/Naturalismo, surge como figura ilustrativa característica dessa relação de subserviência e subalternidade entre a mulher negra e os seus senhores a mulata, com seus dotes exuberantes quase caricaturais. Nesse sentido, a negritude cede lugar à mestiçagem, atribuindo à mulata um lugar de “destaque” nos registros literários.
Por um lado, vista como exótica, bonita, atraente e atrativa, dotada das artimanhas culinárias (Gabriela, cravo e canela); por outro, como libertina, amoral e imoral (Rita baiana), como aquela que é apenas dotada de atributos físicos, atrativos aos instintos sexuais; e seu corpo, espaço de prazer. Assim, raça e cor misturam-se e ela torna-se um elemento atrativo capaz de aguçar os instintos humanos. É nesse molde que tal negrofagia sensorial vai delineando a sua história (da “mulata”) enraizada à identidade nacional.
Gilberto Freyre muito chamou a atenção tanto para o papel sexual desempenhado por essas mulheres, quanto para sua condição ao reproduzir o ditado popular Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar. No centro destas representações, a figura da mulata é triplamente subalterna: por ser mulher, pela sua condição social e por sua cor; porém um elemento desejável para o olhar hegemônico. Portanto, no sistema de dominação masculina, para os senhores, possuir sexualmente seria reafirmar sua condição de superioridade e, para a mulher negra, a submissão, incapacidade e impotência.
Assim, a literatura aliada à historiografia encarregaram-se de construir e perpetuar a imagem estereotipada de uma mulher “negra/mulata” que chega ao nosso século XXI alicerçado no signo ideológico nega. Comumente, tal signo é utilizado de forma pejorativa quando um homem mantém um relacionamento extraconjugal ou quando se refere a várias mulheres – sejam elas loiras, ruivas, não importa (nesse caso, referente a algumas regiões do país). Ele também aparece evidenciado no enunciado tão conhecido e utilizado por alguns não sou tuas nega ou, ainda, cristalizado no título da minissérie exibido pela rede Globo em 2014 O sexo e as negas. O cerne da questão nos parece residir no fato de que esse signo favoreceu, sobretudo, a imagem de uma mulher negra fragmentada, vista apenas sob o viés biológico, o que a estigmatiza e a reduz. Assim, a historiografia – contada sob a ótica do colonizador – e a literatura canônica elitista auxiliaram a forjar e perpetuar a construção desse perfil de mulher, o qual arraigou-se no imaginário social e coletivo e desenvolveu-se a tal ponto de encontrar espaço em nossa sociedade.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela. Rio de Janeiro: Record, 1958.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Coleção Grandes Leituras. São Paulo: FTD, 1993.
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Editora Global, 2004. 49 ed.
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1982.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O Canibalismo Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1985.