Num dia qualquer, levamos meu filho e uma sobrinha para um parque aqui de Recife. Como já era um pouco tarde, havia poucas crianças e, dentre os pais e cuidadores presentes, um casal nos chamou atenção. Era um casal negro com uma menina que deveria ter uns três anos. A menina, como toda criança, queria interagir com as demais, testar seus limites nos brinquedos, se sujar. No entanto, a cada tentativa dela de fazer algo, que não fosse ir acompanhada de um dos pais, no balanço ou na gangorra, por exemplo, era reprimida. Em um dado momento, a menina precisou pedir desculpas a outra criança por uma situação em que a menina não pareceu ter provocado.
Alguns veem, a partir desse relato, pais que não dão liberdade à sua pequena para brincar livremente, ou seja, pais repressores. Eu, por outro lado, percebo os efeitos do racismo na nossa forma de tratar a infância de crianças negras. E, naturalmente, que não posso afirmar que, na situação narrada, foi o racismo o (único) responsável pela atitude dos pais, mas essa foi minha leitura, então, partirei dela para falar sobre criação e raça.
Para começar, entendo que, acreditar que é possível a uma criança negra gozar da mesma liberdade que uma branca é, no mínimo, utopia, considerando que vivemos num país onde crianças e adolescentes negros são assassinados todos os dias, inclusive, pelo Estado.
No relatório divulgado em Julho de 2015, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), verifica-se que o número de homicídios entre crianças e adolescentes, entre 1990, ano de aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, e 2013, o número de homicídios entre jovens de até 19 anos dobrou. O número de adolescentes negros, vítimas, chega a quase quatro vezes o de brancos. São “meninos negros, pobres, que vivem nas periferias das grandes cidades” (UNICEF, 2015, p. 34). São crimes que ficam sem solução e, portanto, sem punição.
Nem todos tiveram acesso a esses dados alarmantes divulgados pelo UNICEF. Para mães negras, sobretudo, as que moram na periferia, não precisa, pelo menos não para terem noção do que é ser jovem negro no Brasil. Esses dados, apenas expõem a realidade que vivenciam cotidianamente.
Manter o filho vivo, em muitas famílias, é, portanto, a primeira missão dos pais: Não corra diante de um carro de polícia; Não ande sem identidade; Mantenha suas mãos sempre visíveis; Fique sempre limpo!; Não arrume confusão! As demais questões da criação vem depois, pois sem essa primeira, tudo perde o sentido, porque sem ela, não há filho (s).
Não estou, com isso, dizendo que outros aspectos como a afetividade, o exercício da liberdade, etc, são menos importantes. Só que sempre nos foi negado que fossem os únicos objetos de preocupação em nossa maternagem e, infelizmente, permanecem sendo, pelo menos, para a maioria de nós.
Nesse sentido, bell hooks, em “Vivendo de Amor”, afirma que sobreviver no regime escravocrata, muitas vezes, esteve ligado à capacidade do negro em reprimir as emoções. Assim, crianças negras cresceram num contexto em que precisavam sobreviver, numa sociedade que as castigavam, lhe expunham à fome, abusava física e emocionalmente delas. É possível acreditar que, no Brasil, superamos essa cultura a nós imposta, considerando que o contexto social, guardadas as devidas diferenças, ainda é imensamente hostil?
Em termos de conduta social, como esse aprendizado histórico em relação às emoções, somando-se ao racismo estrutural e institucional, influenciam a forma com que nos relacionamos com nossos filhos? A forma como lidamos com seu comportamento? Com sua personalidade?
Exercer uma maternidade ou paternidade que se ocupe apenas do desenvolvimento pleno da criança, em termos emocionais, intelectual e físico, é um privilégio que os pais da menina do parque, por exemplo, não possuem. E vejo que precisamos pautar cada vez mais em nossos espaços. Porque são elementos que não dependem do “querer”, mas de nossas condições de acesso, de sobrevivência, ambos limitados pelo racismo.
É angustiante observar como os espaços de discussão, virtuais e presenciais, que tratam de criação de filhos, desconsideram completamente o aspecto racial. Mães falam sobre como seus filhos devem se sujar e se vestir como quiserem para ir ao shopping, por exemplo, mas você só consegue lembrar que, mesmo muito bem vestido, seu filho é excluído, discriminado.
Oliveira (2007) afirma que “as crianças brancas não necessitam lidar com sua identidade racial, não precisam se fazer aceitar ou lidar com a rejeição em termos raciais, nunca são interpeladas racialmente” e, assim, eu me pergunto: quais crianças podem se sujar? Quais podem circular livremente de pijama sem serem “confundidas”? Sem sofrerem com agressões verbais, físicas ou mesmo serem expulsas de determinados ambientes?
Eu sempre comento com algumas amigas como a gente precisa perder tempo lidando com o racismo. Como distinguir o que é minha individualidade e o racismo sofrido? Para alguns a timidez é uma questão apenas de personalidade, para outros pode ter um componente a mais: a baixa autoestima. São mensagens recebidas diariamente e que dizem, entre outras coisas, que há algo muito ruim em ser negro.
Nesse contexto, a escola tem papel fundamental no reforço do racismo, pois se constitui num dos espaços, onde as crianças sofrem não apenas com a invisibilização de sua história e cultura nos materiais didáticos, por exemplo, mas com o racismo praticado por professores e outras crianças. É o racismo estrutural e institucional que se apresenta aos nossos pequenos desde a mais tenra idade. Quantos negros podem dizer que não sofreram com o preconceito racial no espaço escolar? Quantas crianças podem dizer que foram acolhidas, quando agredidas? De acordo com Oliveira (2007, p.17):
“O incômodo sentido por ela não encontra espaço para desabafo, nem também haverá, com facilidade, pessoas que reconheçam a angústia peculiar da sua situação, pois o que o senso comum dita é que “quanto mais se falar de racismo, mais se estará dando espaço para que ele se manifeste.”
Some-se ao silêncio em torno do racismo, já que “somos todos iguais”, o fato da criança negra sempre ser vista como “não tão criança assim”. Existem estudos que mostram que elas recebem menos colo, menos “paparico” das professoras na educação infantil que crianças brancas.
O racismo aparece na educação infantil, na faixa etária entre 0 a 2 anos, quando os bebês negros são menos “paparicados” pelas professoras do que os bebês brancos. Ou seja, o racismo, na pequena infância, incide diretamente sobre o corpo, na maneira pela qual ele é construído, acariciado ou repugnado (OLIVEIRA; ABRAMOWICZ, 2010, p. 222)
Não é de se estranhar, portanto, que crianças negras sejam retratadas pela mídia como “não tão crianças assim”. Entram numa categoria diferente do “ser criança”, assim como mulheres e homens negros são vistos como mais resistentes à dor, por exemplo, meninos e meninas negros são percebidos como pessoas que não necessitam de colo, aconchego, de carinho. Já vi reportagem chamando meninos de 10 anos de “jovem”, ao mesmo tempo em que há matérias nomeando jovens de 16-17 anos de “meninos”. Preciso dizer a cor dessas pessoas?
Diante desse contexto, individualizar o problema e achar que o empoderamento em casa será suficiente para lidar com essas situações é, para mim, um equívoco, porque a polícia vai continuar matando, o sistema de saúde vai permanecer discriminando, a escola seguirá excluindo não importa quão empoderados nossos filhos sejam. Fora de nosso lar, crianças e adolescentes terão que travar, diariamente, uma batalha física e emocional para sobreviver.
No entanto, não é nosso objetivo, desconsiderar a importância da educação familiar, no que diz respeito à valorização da negritude, enquanto elemento fundamental para a formação de uma boa autoestima, mas é preciso chamar atenção para a dimensão do problema, porque ele não é individual. Ele é coletivo. Portanto, precisa ser tratado como tal. Precisamos lembrar sempre que o racismo não começa e não termina em nossa casa, como alguns querem nos fazer crer, transferindo o problema para as famílias negras. O racismo, e sua reprodução, nos são impostos DENTRO e FORA de nossa família.
Nossa intenção é colaborar para o debate sobre os impactos do racismo na constituição das pessoas negras e refletir sobre estratégias de sobrevivência que passem pela possibilidade da criança negra desenvolver seus potenciais, sua autoestima, lidar com suas emoções e ocupar os espaços que são seus por direito.
Mas como fazer isso se, antes de qualquer coisa, precisamos lutar/debater, politicamente, formas para manter nossos filhos vivos? São ações que se excluem ou se complementam? Eu não tenho a resposta. Na verdade, espero encontrá-las junto a outras mães negras. Junto a mulheres que sabem exatamente o que sentem quando seu filho de 4,10,14 anos cruzam a porta de casa e vão para a rua, longe de suas asas protetoras e perto demais daqueles que não admitem sua existência.
REFERÊNCIAS
HOOKS, bell. Vivendo de Amor. 2010. Disponível em:<<http://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/#ixzz4DBQW0xfz>>. Acesso em: 10/06/2016.
OLIVEIRA, Fabiana; ABRAMOWICZ, Anete. Infância, raça e paparicação. Belo Horizonte: Educação em Revista, v. 26, nº 2, ago. 2010, p. 209-226
OLIVEIRA, Lúcio. Tímidos ou indisciplinados? Coleção Percepções da diferença. Negros e brancos na escola. Volume 7. Nov&Dez Criação e Arte.2007.
UNICEF. ECA 25anos: Estatuto da Criança e do Adolescente. 2015. Disponível em> <<http://www.unicef.org/brazil/pt/ECA25anosUNICEF.pdf>>. Acesso em 11/07/2016.