Há tempos que tenho observado o quanto a mídia e determinados setores da sociedade tem eleito as novas representantes, novas vozes de segmentos que dizem respeito a negritude. Toda vez que vejo manchetes anunciando a “nova representante” de alguma coisa referente ao movimento negro me pergunto: quem elegeu?!
Para essa discussão parto da premissa de entendimento do feminismo negro enquanto um movimento coletivo e horizontal, nossas vivências pesam tanto na balança quanto nossos conhecimentos teóricos na construção de cada uma de nós e, assim, na nossa perspectiva de luta. Ou seja, somos múltiplas, diversas e, por mais que nos identifiquemos com quem é eleita para determinado papel, ainda assim, nos configuramos também em nossas particularidades.
Dessa forma, é possível dizer que, quando a sociedade brancocentrada elege representações para as temáticas negras também é uma maneira de nos dizer que o lugar que queremos ocupar já está contemplado e que a gente se dê por satisfeitas. Por isso é tão difícil nos ver nesses espaços na perspectiva coletiva, ou seja, não estamos ocupando nada, estamos participando de um espaço que a branquitude nos concedeu, nos permitiu estar.
E essa permissão é limitada, e o espaço é reduzido a uma ou duas pessoas, porque o poder é deles e o controle também, pois tem período certo para acontecer, de outra forma com tempo, espaço, possibilidade e oportunidade os nossos mudariam a estrutura e isso o poder dominante não irá permitir.
Uma armadilha discursiva que individualiza nossas ações, pois criam representações onde nunca houve, nos impulsionam para o consumo, de forma a dizer que, apesar de todas as mazelas que atinge a população negra numa sociedade racista e desigual como a brasileira, se todos se esforçarem também serão capazes de estar nesses espaços e consumir determinados produtos.
A falácia da meritocracia permeia essa lógica de representatividades únicas, ou seja, se um ou dois conseguiram, basta que todos façam o caminho parecido, se esforcem para que também consigam. Enquanto isso, vamos reproduzindo as manchetes do “primeiro a ser”, ou seja, a primeira da família a entrar na universidade, a primeira a ocupar determinado cargo de liderança, a primeira a receber determinado prêmio. Somos a maioria da população brasileira e o único lugar em que pesa essa maioria é nos índices de desigualdade e violência.
É evidente que as pessoas pretas que estão nesses não lugares também carregarão o peso de lidar com essa representatividade, afinal as regras estão postas. Haverá o limite de atuação devido a lógica de dominação dos espaços e em contrapartida a cobrança por parte daqueles que se veem representados. É preciso estarmos atentas a essas armadilhas e não legitimarmos os instrumentos de controle que a branquitude lança sobre nós.
Não estou dizendo que a presença de figuras negras na tv, nas propagandas e em capas de revistas não sejam importantes. Sim, é, particularmente porque é preciso criar a consciência coletiva das nossas particularidades e diferenças. É preciso mostrar para essa sociedade que o Brasil é feito de negras (e negros) e indígenas também, na perspectiva de quebra de padrões normativos que elegeu o branco como ideal. Que consumimos, que queremos nos ver, que marcas e produtos se preocupem com nossas singularidades.
Porém, é preciso saber atuar de forma a não ficarmos presas a uma ferramenta de controle que nos impede de pensar para além do que está posto pela dominação. Fugir de uma pasteurização das nossas identidades e nossos saberes. Como Audre Lorde ressaltou:
“É aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Pois as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína.”
E essa mudança genuína só virá quando houver abalo nas estruturas sociais que nos colocou nos lugares pré determinados pela branquitude, lugares esses que segregam e marginalizam nosso povo por séculos. Essa individualização de nossas lutas, na medida que elegem um ou uma representante para falar por todos, mostra de forma explícita o modelo neoliberal atuando sobre nossas dinâmicas a fim de minguar a força que vem do coletivo.
É preciso enxergar em quais espaços a questão da representatividade negra deve ser reforçada e até mesmo imposta visto que numa sociedade racista como a nossa, não há como esperar nada vindo de graça, apenas pela boa vontade da branquitude. Só mudaremos práticas e discursos quando abalarmos de vez as estruturas de poder, de decisões políticas e de construção de saberes e é nesses espaços que a presença negra ainda sofre barreiras e resistência de todas as formas.
A construção do negro enquanto cidadão portador de direitos ainda é um processo que está longe de seu final. Se buscarmos na história brasileira fatos que comprovem como a desigualdade social atingiu nosso povo pós escravatura, nos deparamos com esse mesmo poder que nos mantem, hoje, afastados dos espaços de decisão e construção de cidadania. É preciso romper com essas amarras históricas que estruturam a desigualdade e cuja principais vítimas é a negritude.
Dessa forma, não podemos nos contentar apenas com uma baixa representação ou uma representação individualizada em determinados espaços que, na prática, contribuem muito pouco para tirar a população negra brasileira da condição de subalternidade onde fomos colocados. Nos dando assim falsas perspectivas sobre a tal “mudança genuína” apontada por Lorde.
A questão da representatividade pode se tornar uma armadilha se não nos atentarmos o quanto ela é capaz de minimizar os efeitos e o valor da luta coletiva em prol dessas mudanças estruturais, ao colocar sobre meia dúzia de pessoas negras a responsabilidade e conquistas de todo um movimento.