Carta às mulheres negras do século XXI | Editorial
Amiga, espero que você esteja bem por aí. Estou escrevendo essa carta porque temos ultimamente presenciado, cada uma do seu lugar, uma série de ações e de acontecimentos que tem nos entristecido. Escrevo porque são tantos os assuntos que, sem a escrita, corro o risco de perder o fio da meada.
Não sei se você está por dentro do sistema eleitoral brasileiro. Então, vou te explicar bem por alto. Antes, preciso colocar algumas coisas. Você sabe que o Brasil é um país que teve sua formação social centrada na colonialidade, certo? Nesse sistema, a colônia existe para gerar riquezas para a nação colonizadora. A relação é bem de exploração e violência mesmo. Entre outras coisas, isso quer dizer que tanto os povos originários, indígenas que já estavam neste território, quanto povos africanos sequestrados, viveram pelo menos 400 anos sendo explorados e violentados, dando cor e forma a imagens despotentes construídas pela branquitude colonizadora.
Entre muitas dessas imagens, que lutamos para destruir, ainda persiste a ideia de que negros e indígenas são, de um lado, pessoas feias, fracas, ingênuas, sem inteligência, não confiáveis e, por outro lado, uma gente violenta, vingativa, brutal, traiçoeira e má. Por qualquer lado que você olhar, este prisma te traz imagens de uma gente que você não colocaria sua mão no fogo; nem escolheria para te representar politicamente.
O processo do voto no Brasil começou em 1.532 com uma eleição na capitania de São Vicente (litoral do estado de São Paulo). Podiam votar ‘homens bons’ e era só isso mesmo! Embora a definição seja ampla e ambígua, ela evidencia quem não podia votar: mulheres, indígenas, negros, despossuídos de propriedades e renda. Somente em 1821, ou seja, um ano antes do fim do período colonial, que se “encerra” com a Independência do Brasil, foram realizadas eleições de caráter geral, que extrapolavam o âmbito local e municipal.
A primeira menção ao sistema eleitoral veio em 1824, com nossa primeira constituição, que criou a Assembleia Geral, órgão máximo do poder Legislativo composto pela Câmara dos Deputados e o Senado, com integrantes eleitos pelos súditos do império. O voto era obrigatório, mas só quem podia votar eram homens com mais de 25 anos e com uma renda determinada. Continuavam sem poder votar: pessoas com idade inferior a 25 anos, mulheres, assalariados, soldados, indígenas e negros escravizados. Além disso, as eleições eram indiretas e feitas em quatro etapas: cidadãos da província votavam em outros eleitores; os compromissários escolhiam os eleitores de paróquia, que elegiam os eleitores de comarca e estes elegiam os deputados. Já os senadores eram indicados pelo imperador.
Levou mais de um século para que as mulheres pudessem votar. Foi em 1932, mas esse direito só foi exercido em 1935!!!!! E aí, advinha quais eram essas mulheres?
Atualmente, a gente ainda tem uma série de regras, mas de modo geral, o acesso ao voto foi ampliado. O voto ainda é obrigatório para todo brasileiro com mais de 18 anos e facultativo para analfabetos, pessoas com 16 e 17 anos e acima de 70 anos. Não podem votar os estrangeiros e os que estão em serviço militar obrigatório.
Só pra gente não se perder, hoje, a gente escolhe: vereador/a; prefeito/a; deputados/as estadual e federal; senador/a; governador/a e presidente da república.
Como você sabe, o Brasil é um país de dimensões continentais e questões sociais bem diferentes de estado para estado. Não é razoável adotarmos o mesmo número de vereadores, por exemplo, para todas as cidades. Assim como não é razoável que um partido político pequeno tenha o mesmo número de votos que um partido grande para eleger um deputado estadual. É preciso haver um equilíbrio e esse esforço é o chamado sistema proporcional que, em tese, ampliaria a participação dos setores minoritários da sociedade nos parlamentos.
A equivalência nesse sistema funciona através de dois quocientes (resultado de uma divisão): eleitoral e o partidário. O quociente eleitoral é o número de votos que cada partido precisa ter para ocupar uma vaga no parlamento. Pra gente chegar a esse número, a gente vai dividir o número de votos válidos pelo número de vagas a serem ocupadas.
Acontece que pessoas negras, indígenas, LGBTQIAP+, periféricas etc não conseguem chegar a esses postos. Não conseguem concorrer porque o sistema de poder constituído não favorece que essas pessoas se organizem, organizem campanhas de comunicação, paguem profissionais e a veiculação de propaganda, etc. Isso porque, mesmo com algumas garantias – como a de 30% do dinheiro do financiamento público de campanhas tendo que ir pra mulheres negras – os partidos políticos ainda não cumprem a Lei, os tribunais eleitorais não fiscalizam e assim vai.
O tempo passou e a gente, parafraseando Lélia González, deu uma rasteira no sistema eleitoral e inventamos os mandatos coletivos. E o que significa isso? Amiga, significa que legalmente somente uma pessoa vai concorrer, mas, na verdade, serão duas, três, quatro ou cinco pessoas, aumentando tanto as possibilidades de eleição quanto o compartilhando ideias, projetos políticos e soluções para a sociedade.
Os Mandatos Coletivos, minha amiga, são uma invenção, uma inovação política, ou o que os brancos gostam de chamar de tecnologia cívica para resolver um dos milhares de problemas que era a falta de representatividade nas casas legislativas.
E aí entra outra conversa, minha comparsa, que eu queria também ter com você: essa ideia de representatividade. Lembra quando a gente ficava (ou fica né) gritando aos quatro cantos – até nas nossas redes sociais – aquela velha frase “representatividade importa”? Eu me peguei pensando muito sobre ela depois dos últimos acontecimentos, e acho que a gente precisa fazer umas conversas mais profundas sobre isso, sabe?
Pensei em conversar com você sobre o que a professora e pós-doutora em ciências da comunicação, Rosane Borges, fala sobre política, representação e imaginário. Ela escreveu esse texto aqui, que é grandão e cabeçudo, mas eu queria que você lesse. Destaquei pra gente essa parte: “Os slogans ‘Vai ter negra e gorda na universidade!’, ‘Vai ter preta periférica e trans na pós-graduação!’, ‘Respeitem meus cabelos, brancos!’ sinalizam para novas formas de elaboração e exploração do político, onde o ético e o estético se imbricam em benefício da projeção de outras subjetividades, do reposicionamento das engrenagens corporais em lugares de prestígio da luta social e da reflexão crítica”.
Se liga que nesse trecho, ela fala “ético e estético”. Aqui, penso que ela está querendo dizer que não é só a “representatividade” que importa, mas outras questões também precisam vir. Não basta ser uma mulher negra a nos representar, tem que ter reposicionamento e reflexão crítica. Não sei se me fiz entender, amiga, mas o que eu tenho pensado cá com meus botões é que a representatividade vazia pode trazer prejuízos pra gente. E ela pode alimentar sonhos coloniais que parecem estar ali, adormecidos na branquitude e na gente também.
Ainda segundo Rosane Borges, “Política, representação e imaginário formam um tripé incontornável, ainda que sobre ele pesem resistências justificadas pela crença de que a conquista do poder se dá pela disputa de espaços institucionalizados”. Acho que isso resume muito o que precisamos discutir como movimento de mulheres negras que querem transformar os espaços de tomada de decisão, sabe? Tem um trabalho grandão pra gente fazer que vem antes e vai além de eleger mulheres negras nas câmaras de vereadores, câmaras de deputados, prefeituras e outros lugares.
E aí, pra gente que tem projetos políticos coletivos, ficam algumas perguntas: como a gente pode firmar alianças mais duradouras entre nós? Como desenhar uma estrutura negra que reforce nossos compromissos? Quais são os desafios subjetivos quando nos deparamos com espaços de poder brancamente sedutores?
Outras coisas que fico castelando é: por que a gente sai abanando o rabinho atrás de todo biscoito que a branquitude dá pra gente? Como a gente pode se fortalecer para estar mais firme nesses lugares leucocráticos (como diz o Professor Muniz Sodré rsrs)?
E pra finalizar a pergunta de milhões: A gente tá realmente comprometida quando invocamos o conceito de bem-viver?
Fica aí pra reflexão, amiga.
Um beijo e se cuida!