Todos os anos, o 13 de maio reaparece como uma ferida aberta na memória coletiva do povo negro. Apontado nos livros didáticos como “o dia da abolição da escravatura”, é celebrado por muitos como se a assinatura de uma princesa tivesse sido suficiente para garantir liberdade, dignidade e reparação a milhões de pessoas negras escravizadas. Mas nós sabemos: não foi liberdade, foi abandono.
A abolição formal da escravidão em 1888 não veio acompanhada de políticas públicas, nem de qualquer tipo de reparação social, econômica ou simbólica. Ao contrário, o Estado brasileiro lavou as mãos. Deixou à margem da sociedade o povo que por mais de três séculos sustentou a riqueza do país com o próprio corpo. E, apesar disso, constituímos formas coletivas de organização para suprir algumas lacunas.
Em resposta ao descaso, ao apagamento e à exclusão institucionalizada, o povo negro se reuniu para construir redes de apoio, comunidades, espaços de memória, resistência e criação. Com o passar dos anos, esse impulso de organização floresceu em diversos territórios. Os terreiros de candomblé se mantiveram como espaços de proteção, de cura e de articulação política. As rodas de capoeira, os grupos culturais e as associações de bairro formaram redes de enfrentamento ao racismo estrutural. E no centro dessas redes, sempre estiveram as mulheres negras. Não apenas como cuidadoras, mas como estrategistas, comunicadoras, educadoras e líderes.
O surgimento das organizações sociais negras contemporâneas é herdeiro direto dessa trajetória. Instituições como o Geledés – Instituto da Mulher Negra se tornaram referência na produção de políticas públicas, de conhecimento e na incidência antirracista. O Instituto Odara, sediado na Bahia, articula o feminismo negro a partir de uma perspectiva nordestina, comunitária e intergeracional. Assim como o Blogueiras Negras, que há 13 anos inspira e fortalece as histórias e os legados das mulheres negras, tantas outras seguem semeando autonomia e futuro em seus territórios.
Diante da omissão do Estado, as organizações sociais negras são ferramentas de enfrentamento e reinvenção cotidiana. São espaços onde se produz cuidado, mas também política; onde se forma gente, mas também se constrói memória e se reencanta o mundo. Quando dizemos que as mulheres negras são a base da pirâmide social, não é apenas para denunciar a opressão, é também para afirmar que são elas que sustentam tudo. Coordenam projetos, constroem pontes e alimentam futuros.
Desde Luíza Mahin, que nos legou o símbolo da insurgência, até Lélia Gonzalez, que nos deu linguagem para pensar a interseccionalidade a partir do Brasil e da América Latina. Passando por Beatriz Nascimento, que nos ensinou sobre quilombo como estratégia de vida, e Sueli Carneiro, que segue sendo farol na luta por justiça racial e epistêmica. Também Maria Beatriz do Nascimento, Laudelina de Campos Mello, Antonieta de Barros, Thereza Santos e tantas outras que não couberam nos livros, mas estão cravadas na história do Brasil. Mulheres que criaram, com suas palavras e ações, um campo político próprio: o movimento de mulheres negras.
A existência das organizações sociais negras hoje é continuidade dessa força ancestral. Quando uma jovem negra encontra abrigo num projeto que oferece educação, cuidado, cultura e proteção, ela está acessando o que o Brasil nunca lhe deu: a chance de viver com dignidade.
São essas organizações que têm mantido vivas as possibilidades de futuro para o povo negro.
Constroem dignidade onde o Estado se omitiu, criam caminhos onde houve abandono e sustentam memórias que o Brasil tentou apagar. Não fazem o papel do Estado, fazem o que ele se recusa a fazer: garantir humanidade, cuidado e continuidade para o nosso povo.
Por isso, afirmamos em alto e bom som: 13 de maio NÃO É DIA DE NEGRA. É dia de denúncia. É o dia em que lembramos que a abolição foi feita sem povo, sem plano e sem justiça. Mas também é o dia em que reafirmamos o poder da nossa continuidade. Seguimos com suor, com afeto e com luta organizada.
Autoria e Edição: Wellington Silva
Imagem: Helida Costa