O cinema africano do final do século XX, embora ainda praticamente desconhecida pelo público brasileiro (salvo em algumas importantes iniciativas que ocorreram em algumas capitais, como foi a Mostra de Cinema Africano em Belo Horizonte, no Palácio das Artes) é marcada por uma linguagem extremamente plástica, que expressa, por meio de um discurso profundamente político, as raízes, a pluralidade cultural e os impactos e entraves com a cultura ocidental. Os filmes dos diretores africanos (em alguns casos com parcerias com países europeus) evidenciam olhares agudos sobre a relação do homem moderno com o meio, a imbricada relação entre o processo de produção do capital no início do século XX e as relações sociais, o valor e o peso da herança cultural, o racismo, bem como o impacto das relações dos países dos eixos norte e sul.
A produção cinematográfica africana inicia-se na Tunísia, com a obra Ghézal, a filha de Carthage (1924), seguida por duas produções egípcias, Leila (1926) e Zainab (1926). Os filmes que deram sequência à essa produção inicial pautavam-se sobretudo pelo contraste com a realidade colonial. Jan Vasina, no volume 8 da Coleção História Geral da África, analisa que os governos eram reticentes quanto ao desenvolvimento da indústria cinematográfica, sobretudo por motivações políticas. Aliou-se a isso o fator financeiro, motivos que levaram a uma entrada tardia dos países na cinematografia, iniciando-a em meados de 1970 – momento em que os dois filmes sequencialmente analisados foram produzidos.
Em uma primeira aproximação, os filmes narram as transformações pelas quais os países africanos passaram nos momentos subsequentes ao processo de independência. O olhar crítico das produções independentes provoca no espectador uma reflexão ao mesmo tempo em que tem o poder de educar (ainda que em certo sentido) apresentando para um público uma visão própria, isto é, uma visão de si e de como vivenciaram determinadas experiências. Nesse sentido, cabe retomar a provocação feita pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, ao propor uma narrativa na qual o protagonista seja o povo africano, em que a construção do discurso se dê sob esse ponto de vista, contribuindo para que não caiamos mais no “perigo de uma história única”. É criar um olhar cuja sensibilidade esteja conectada com a cultura e o pensamento africanos e, sobretudo, a forma como compreendem as experiências. Há, ainda, algumas características atreladas à linguagem cinematográfica e que aparecem na plasticidade das construções das cenas e dos diálogos, ricos em críticas: a opção pela crítica às sociedades industriais, especialmente alguns países europeus (sobretudo a França); o problema inerente ao desenvolvimento das cidades; a tecnologia e o embate com a tradição cultural; o respeito e a valorização da ancestralidade; o senso de comunidade; a luta pela sobrevivência são alguns dos pontos que observei ao entrar em contato pela primeira vez com os filmes africanos.
Dirigido por Sidney Sokhona, Safrana ou le droit à la parole (Safrana ou o direito à palavra) narra a saga de trabalhadores (todos homens) em meados dos anos 1970. Organizados em um grupo coeso, os homens aprendem a rotina de trabalho em uma fábrica na França. Alguns há mais tempo na França, outros nem tanto (como é o caso da personagem Bouba Touré, fascinado pelo mundo ocidental) há uma tentativa inicial de se assemelhar aos franceses, em outras palavras, de se sentir pertencente àquele país. Entretanto, problemas surgem entre os trabalhadores e o empregador, até que eles abandonam Paris e iniciam um trabalho de aprendizagem em uma região rural francesa. Os quatro trabalhadores aprendem técnicas de cultivo e retornam a seu país de origem, onde vão tentar se reinserir no mercado de trabalho por meio do aprendizado na França.
A auto-organização, o senso de comunidade, a valorização da terra, o retorno às origens, a língua: o filme possui a coragem em apontar como esses elementos se mesclam, resultando em uma síntese, em uma opção que privilegia – apesar das diversas possibilidades se desenharem no horizonte (me refiro sobretudo à opção existente de permanência em outro continente, apesar das dificuldades que se mostraram e que foram sendo construídas pouco a pouco para o espectador) a possibilidade de um retorno ao país de origem e a partir de lá estruturar-se profissionalmente e, sobretudo, inserir-se no mercado de trabalho. Tanto Safrana quanto Le Noire de… tratam das relações de trabalho e da forma (muitas vezes perversa) com que a oferta de mão de obra é tratada. Talvez resida aí também mais uma crítica que os diretores africanos têm a nos dizer.
Primeiro longa metragem dirigido por Ousemane Sembene (1966) Le Noire de… (A Negra de…) integra a obra do cineasta, cujo cinema se utiliza da imagem para apresentar problemas sociais e apoiar diálogos sobre profundas verdades e ideologias fundamentais, é o que afirma Jan Vasina, no volume 8 da Coleção História Geral da África. O autor ainda argumenta que
Toda a obra de Sembene trata do embate entre os modos de vida colonial e europeu, bem como das realidades africanas – componente de negritude –, das tensões entre as classes sociais – componente marxista –, rendendo tributo aos heróis pré-coloniais – componente nacionalista. Este último aspecto encontra a sua maior expressão em seu Samori, série épica composta de seis episódios, produzida para a televisão (VASINA, 2010, p.751).
A começar pelo título, o filme é um grande soco no estômago. Negra…de quem? Confesso que todo um discurso histórico passou por minha cabeça com fragmentos de imagens dolorosas, sem falar nas cicatrizes do violento processo de escravização que nossas antepassadas sofreram. O filme narra a triste e trágica história de uma jovem senegalesa que vai para a França trabalhar como empregada doméstica na casa de um casal de classe média. O filme, narrado a partir do ponto de vista da protagonista, aos poucos vai apresentando as dificuldades, a crueldade e o choque cultural ainda latente entre os povos. Sem mencionar, obviamente, o racismo que permeia toda a experiência da protagonista. Às diferenças culturais – plasmadas sobretudo nas diferenças e no não entendimento comunicativo durante todo o filme – somam-se ao esfacelamento de sonhos e à uma desilusão crescente quanto à idealização de uma vida mais confortável do ponto de vista material. Com um final triste e melancólico, a produção é emblemática por tratar de temas tão importantes e que foram por muito tempo silenciados – como é o caso da solidão da mulher negra e de sua representação na história.
Afinal, o que todos esses filmes mostram?
As produções, ainda que estruturalmente criadas em um período em que a luta pela independência se colocava na ordem do dia, não deixou de apresentar um elemento importante e que atravessa toda a história africana: a diáspora. As formas de viver em outro solo, em outra cultura me parecem, ainda hoje, passíveis de ampla discussão, sobretudo em um momento em que discutimos nos diversos mecanismos nacionais e internacionais o dilema, a vida, o problema, os desafios e dificuldades dos imigrantes, sejam por deslocamentos forçados ou não. Um último argumento, para encerrar minha breve apresentação, refere-se à construção e à emergência de um discurso próprio, uma voz que vem sendo ouvida cada vez mais forte. Seja pelo cinema, pelas artes plásticas, pelo teatro ou pela literatura, é preciso que a gente conheça cada vez mais a produção cultural africana contemporânea. De igual modo, é importante que estes aparelhos estejam cada vez mais disponíveis, já que são difíceis de serem encontrados. Para concluir, volto a destacar a importância de conhecermos não só a obra de diretores africanos mas também de conhecer outros cineastas negros e negras – inclusive brasileiros – que estão construindo um novo modo de fazer cinema.
Referências: UNESCO. Coleção História Geral da África, VIII: África desde 1935. Editado por Ali A. Mazrui e Christophe Wondji. Brasília: Unesco, 2010.
Imagem: Thérèse M’Bissine Diop no filme La Noire de… Diretor Ousemane Sembene (1966).