Desde o dia 8 de janeiro, em algum momento do dia, faço uma prece pela Nigéria. País a quem devemos muito da nossa herança cultural, mas que pelo nosso baixo conhecimento sobre o continente africano, chapamos numa evocação de Mama África, como se toda ela fosse uma coisa só. As influências idiomáticas que carregamos do yorubá, os hábitos nagôs, o trançado dos cabelos, o panteão mitológico do candomblé que cultuamos são um pouco que nossos antepassados nigerianos trouxeram para cá dentro dos navios e fizeram resistir ao longo de séculos. Devíamos cerrar o punho sobre o peito e dizer sem dúvida: Somos Nigéria.
Somos parecidos também em história de colonização, exploração e diminuição do valor da cultural nativa, em exaltação dos hábitos da metrópole, além de sucessivos golpes sobre a democracia e governos corruptos, absolutamente descomprometidos com o desenvolvimento local. Com o agravante, que a presença do colonizador se fez mais austera, até os anos 60, fazendo da Nigéria, um país cuja independência é ainda uma novidade – realidade comum aos vários países do continente, que há menos de 50 anos iniciaram seu processo de descolonização.
A cultura tribal esmagada pelas religiões hegemônicas: o cristianismo e o islamismo, proporciona uma divisão dentro do país, que é ao sul, mais desenvolvido e católico e ao norte, mais islâmico e rural. A cultura ocidental imposta como superior, não à toa é motivo de ódio, dor e fraturas, dando margem ao surgimento de um grupo extremista e violento como o Boko Haram, que significa “a educação ocidental ou não-islâmica é pecado”, cuja a missão é formar um califado em toda região e aplicar a lei sharia, uma distorção da lei islâmica.
Em cinco anos de atividade do Boko Haram, já foram vitimadas mais de 13 mil pessoas, sendo em número significativo as mulheres e meninas as principais vítimas. Além do atentado dos mais violentos da história do terrorismo do mundo, sobre a comunidade de Baga, matando em pouco tempo 2.000 pessoas, sem encontrar resistência ou enfrentamento por parte do estado nigeriano, o grupo extremista também foi autor do sequestro de 276 meninas, entre 8 e 15 anos de idade, transformadas em escravas sexuais e obrigadas a casar com seus algozes. O componente misógino do grupo chama atenção pela crueldade e perversidade, evocando a Sharia como autorização para o estupro e escravização das mulheres e meninas. No Norte da Nigéria, mais de 80 escolas fecharam as portas, por temor da ação do grupo – que almeja impedir o acesso das mulheres à educação formal, especialmente a ocidental.
Os governantes nigerianos seguem omissos, silentes e pouco comprometidos com o enfrentamento ao grupo, numa atitude de conivência, não oferecendo resistência nem compromisso com garantir a vida do seu povo nem frear a fúria do grupo. É inevitável perguntar o porque de tamanha omissão, seja por comprometimento com lideranças desse grupo, seja por desdenhar das vidas de mulheres e meninas violadas e transformadas em bomba. Seja pela atenção maior com ser corrupto e menos com as vidas consumidas pela barbárie.
Como de costume, o resto do mundo mostrou suas condolências às vidas dos franceses mortos pelas ações de terrorismo em Paris. Líderes de todo mundo compareceram e mandaram representantes, inclusive dos vizinhos da Nigéria, alguns na mira das ações do Boko Haram. É inevitável pensar que a vida de 13 homens europeus tem valor superior que milhares de nigerianos mortos com requintes de crueldade. A imprensa mundial rendeu pouco espaço para discussão, pouco esforço de análise e várias desculpas foram dadas. Aqui mesmo, portais de notícias argumentaram que a violência em Paris nos choca mais por sermos mais próximos dos franceses, pelas relações afetivas. De cá, numa terra onde rendemos flores à Yemanjá, fazemos festa para Oxalá e toda cidade é de Oxum, estranho um pouco a declaração. Parece-me que a afetividade e a capacidade de emoção é mais inclinada para vítimas brancas que negras. Não é estranho que num país onde meninos morrem diariamente pelas mãos da polícia brasileira, sem julgamento ou investigação, a sociedade e a gestão pública fecha os olhos. É mais fácil se comover com o brasileiro morto pelo regime da Indonésia, que legalmente concede pena de morte aos envolvidos com o tráfico.
Assim, explicações várias: a dificuldade de obter imagens seja pelo acesso tenso ao local do massacre, seja pela falta de conectividade na região; o descompromisso dos governantes em fornecer informações precisas dos fatos… Muitas foram às justificativas para o desigual tratamento dado ao assunto, todas baseadas nos velhos critérios de noticiabilidade…que servem pouco na hora de se priorizar que BBB foi flagrado na praia, tomando sol. Sangue derramado de pretos não comove: faz parte da história negros se matando.
Pensei em empreender iniciativas, unir pessoas, articular uma ação. Tentar fazer com que Salvador simbolicamente afirme “Somos Nigéria”. Tentei dizer para os portais de notícias brasileiros, para Globo News, para os noticiosos: “queridos, somos descendentes desse povo. Somos mais próximos deles do que qualquer francês do Charlie”. Não sou essa articuladora. Sou apenas uma pessoa que escreve.
Acendi uma vela pedindo pelas minhas irmãs. Peço que elas possam reencontrar a liberdade. E que alguma luz resplandeça sobre a cabeça dos que gerem o mundo: façam algo pela Nigéria. Não precisamos de uma nova Ruanda nos anos 2010. Não precisamos fechar os olhos para mais uma ação genocida.
Je suis Nigeria. Je suis mes frères.
Imagem destacada: Notícias Uol