O racismo não tira descanso, não dá trégua. Enquanto, a partir de políticas afirmativas e lutas ancestrais, o povo negro conseguiu avançar em direitos e conquistar, a duras penas, pistas de cidadania para a tão sonhada liberdade, as estruturas do estado racista, materializadas em equipamentos e símbolos, se organizou minuciosamente para barrar o nosso processo histórico de emancipação.
Vamos aos exemplos:
1 – Se por um lado, nunca tiveram tantos negros nas universidades, produzindo conhecimento e disputando os rumos epistemológicos nos bancos da academia, se aprofunda e “moderniza” o modelo primitivo de encarceramento, cada dia mais vinculado ao Capital internacional, e vivenciamos a monetarização de nossa liberdade e nossa condição de humanidade nas penitenciárias fétidas e putefratas em todo o planeta;
2 – Se por um lado, a partir do advento das tecnologias da informação e comunicação, além das políticas de incentivo ao consumo de bens materiais e tentativas de universalização do acesso à internet, a negrada passou a disputar com mais fôlego o âmbito da esfera pública, dando vida às suas vozes e reivindicando cada vez mais o tal suado lugar de fala, a cada dia se aprofunda a política genocida do estado, que emudece comunidades por inteiro a cada jovem com sua vida ceifada nas periferias das grandes e pequenas cidades do planeta: se multiplicam as claudias, os amarildos, os davis, os eduardos, e os programas policialescos seguem sem constrangimento trocando nosso sangue por pontos no ibope;
3 – Se por um lado, a cultura negra (em sua diversidade e ressignificações contemporâneas – afrotombamento, fit dance, batekoos, rapjazz) nunca teve tanta capacidade de articulação e condições de estruturar circuitos alternativos, além de rackear um pedacinho da contaminada indústria cultural, se aprofunda os movimentos de apropriação e esvaziamento da nossa cultura: campanhas para que pessoas brancas possam utilizar nossos símbolos de luta como meros artefactos artificiais da indústria da moda, naturalização de práticas racistas como o BLACK FACE, relativização da indignação do povo negro diante do racismo, contemporização dos casos de racismo institucional (como a história de daniela mercury e sua trajetória de expropriação da cultura negra) e comparações infelizes de nossas manifestações ao fascismo; uma histeria virtual de brancos entendedores da cultura e da antropofagia, tentando nos ensinar como Gilberto Freyre tava certo e nós estamos errados;
4 – Se por um lado, nunca houve um debate tão forte por representatividade política e nunca houve um momento de projeção de tantas lideranças negras (sobretudo jovens e mulheres) para a disputa dos espaços de poder, tanto tensionamento (inclusive na esquerda), para a inclusão destes novos sujeitos na dianteira dos processos organizativos e dirigentes da classe trabalhadora, por outro lado nunca houve também tão sofisticados métodos de destruição política dos negros e negras, seja pelo questionamento de suas vertentes epistemológicas, seja pelo acirramento de nossas condições materiais de fazer política (desemprego, preterimento nas “liberações” em mantados, isolamento, tentativas se segregação dos movimentos).
A velha tática de utilização de pessoas negras para legitimar a intervenção racista dos brancos segue a todo vapor. É triste e vergonhoso, mas a negrada continua sendo usada como bucha de canhão dos racistas. Me lembro de um espaço em que estávamos lutando para aprovar paridade racial e a primeira fala contrária àquela política foi de um jovem negro, pertencente a um grupo que não acreditava que aquilo seria adequado para tal evento.
Ou seja, o cabo de forças da luta racial novamente parece pendular para o lado de lá, deveremos estar atentas e fortes, pois nossa autoorganização será (já está sendo) brutalmente assediada pelas estruturas de poder que se reconfiguram para triturar nossos corpos, nossas demandas, nosso jeito de fazer política. Precisaremos de muita solidariedade negra para resgatar alguns irmãos e irmãs que estão arriscados a cair sem ver na fogueira das vaidades, onde só servem de lenha para a chama incessante do privilégio branco. Não se enganem, nada cedido por eles nos servem: o que eles cedem, rapidamente podem nos tirar. Esse é o X da questão: já viu eles chorar pela cor do orixá? É nós por nós, estamos por nossa própria conta. Sustentabilidade econômica precisa ser nosso foco, pq é pelo dinheiro que eles ainda nos submetem. Utilizemos nossa inteligência coletiva, nossas belíssimas tecnologias de sobrevivência, pois os tempos são de muitíssima turbulência. Exercitemos nosso discernimento cosmovisionário para distinguir aliados de oportunistas, contaremos com pessoas não-negras também nessa batalha, e algumas pessoas negras, infelizmente, já escolheram o outro lado. Paciência, a vida é dura e a Justiça se Xangô saberá quem foi quem nessa batalha.
Nossa vitória não será por acidente.
Bruna Rocha é militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer