Para quem vive a negritude e/ou expressa sua sexualidade e afetividade de forma não correspondente ao padrão de normatividade social, tem em seu corpo representações de militância constantes. Porque seu existir já vem carregado de elementos que contradizem a norma, e por serem entendidos enquanto uma ferida nesse padrão – heterossexual, branco, masculino, monogâmico e rico – devem ser combatidas.
Por ser exatamente um corpo que luta, o vemos de maneira mais presente em espaços de debate, confrontos e enfrentamentos, acabando por esquecer a necessidade de se falar a respeito de como esses corpos se afetam, por si mesmos e pelo corpo do outro.
Não tem sido raro notícias de companheiras negras e companheiras lésbicas e bissexuais adoecendo em decorrência do não trabalho com seus afetos; que no dedicar-se quase inteiramente as demandas externas só se percebem adoentadas quando algo grave as aflige – ou quando veem que seus próprios laços de amor estão prestem a se romper, ou nem existiram de fato.
A solidão da mulher negra, vem sendo discutida, numa tentativa de que as atenções se voltem a reconhecer o quanto o fortalecimento da negritude tem de vir acompanhado de discussões acerca da saúde mental dessas mulheres. De ampliar a discussões de que, por muitas vezes, em espaços de militância ou espaços domésticos, a força e resiliência atribuída à mulher preta, vem acompanhada de abrir mão das próprias demandas e emoções em prol de outrem; a sexualidade da mulher preta é constantemente objetificada ou preterida, a afetividade desconsiderada; a reação ridicularizada; a violência e o abuso emocional e físico presentes em qualquer forma de relação ao qual ela se disponha e, o desconhecimento de seus próprios desejos levados a formas de submissão que acabam por levá-las a baixa estima, ao endurecimento emocional, ao adoecimento psicológico.
A compreensão crítica da mulher negra acerca do leque de opressões postas sobre sua sexualidade e afetiva, não a torna imune a eles. Alex Ratts em seu livro, Eu Sou Atlântica (2007), que traça parte da trajetória pessoal e intelectual de Beatriz Nascimento, a coloca como expoente dos trabalhos acadêmicos que se dispõem a tratar a o povo negro e a solidão da mulher negra e acadêmica. Em seu trabalho Beatriz retrata justamente essa questão, retratando a visão crítica, da mulher negra, por exemplo, acadêmica, enquanto um recorte ainda maior das escolhas de seus parceiros e parceiras, ou seja, reconhece-se as opressões e se tenta evitá-las, mas não diminui a possibilidade de experiências amorosas que possa vir gerar o adoecimento pelo abuso físico e emocional, ou pela não atenção a peculiaridade que tange os afetos da mulher preta.
Em relação às pressões relativas a forma de expressão das sexualidades, a mulher é bombardeada por uma série de normativas, geradoras de controle sobre seu corpo, a maneira como ele deve agir e se apresentar na esfera do público e do privado, a quem e como ele deve dar prazer, etc. Um corpo lésbico, nesse contexto, vai contra tais normativas é veementemente punido, desde a violência simbólica, expressa na objetificação do seu corpo ou uso de sua sexualidade como forma de satisfação do prazer masculino, a violência física, que viola e mata correntemente.
Pensar na saúde mental da mulher lésbica, é trazer condições para que as próprias relações homoafetivas não incorram nas violências que a heteronormatividade normatiza; é, assim como a mulher negra, reconhecer as fragilidades e medos, internos e da esfera social, presentes nessas mulheres e acolhê-los a fim de que, uma vez podendo expressá-los nos seus espaços de vivência, a partilha de histórias comuns possam aliviar as tensões e aumentar o vínculo e fortalecimento.
Nessas mesmas condições deve-se entender a mulher bissexual. Entender sua sexualidade como uma potência de afeto e não como um comportamento promíscuo, de indecisão e imaturidade afetivo-sexual ou colocando-a em um lugar de objetificação. Há ainda a demanda, em diversos espaços, de exercer essa visibilidade e lugar de fala que lhe cabe. Submeter o seu desejo a um padrão, subjugar seu conhecimento sobre o próprio corpo e afetos, impor questionamentos que a coloquem em conflitos com de desejo e afeto, agressões que remetam sua sexualidade a algo menor ou pejorativo, pensá-la apenas enquanto pessoa para satisfação de um curiosidade ou relações corriqueiras, deslegitimá-la nas relações de militâncias, são exemplos que colocam, para além do acolhimento dessas mulheres e de suas demandas emocionais, a precisão dessa visibilidade ser vista e discutida com maior frequência e seriedade em todos os espaços em que possam estar presentes.
Em conclusão, afeto, e o falar sobre o afeto, nos permitem entender nossas fragilidades, a entender que temos a possibilidade e o direito de nos reconhecermos não apenas enquanto frente de batalha, ou ponta de lança, mas também como mulheres que também nas afetividades encontram seu poder, seu aconchego, sua energia.
O demonstrar o afeto a amiga, companheira em todos os espaços. O reconhecer o momento de pausa que a outra precisa; o não encarar o adoecimento, o cansaço, a necessidade de se afastar por um momento do embate direto, como fraqueza e o acolhimento dessa necessidade pelas demais também são formas de luta e militância.
Luta em manter nossa companheiras saudáveis física, psicológica e emocionalmente.
Luta em não permitir que as opressões nos endureçam de forma que não possamos parar e acolher e expressar essa acolhimento de maneira efetiva, por meio do abraço, do ouvir atentamente e não armadas de conselhos e julgamentos pré concebidos, do acalanto.
Luta em manter os afetos em meio as nossas divergências, pois sabemos as opressões que atravessam a todas nós,ou algumas de nós, assim com as grandes forças que nos unem.
Podemos, e devemos, encarar a afetividade como instrumento de militância. O afeto nos dá energia. Ele nos une. E nos mantém vivas.
REFERÊNCIAS: RATTS, Alex. Eu sou Atlântida: sobre a trajetória de vida de |Beatriz Nascimento. Instituto Karuza, São Paulo, 2007.
Imagem de destaque: Zanele Muholi