Não é preciso ser um exímio observador para perceber que certos espaços são estruturalmente desenhados para delimitar o que é destinado aos negros e o que é destinado aos brancos. Boas escolas, clubes, cursinhos, universidades. Todos esses espaços que são essencialmente negados ao povo negro.
Nós, que por uma questão quase que de sorte, pertencemos a pequena parcela de negros que puderam ter acesso a esses locais sentimos literalmente na pele as mazelas da falta de identificação e representatividade. Isto é, somos a exceção entre os negros e a exceção entre os brancos .
Conseguimos escapar ao estereótipo de marginalidade e miséria que o sistema racista em que vivemos nos destinou, ao mesmo tempo em que não fazemos parte do grupo ao qual foram pré-determinados esses mesmos espaços que diariamente tentamos enegrecer.
O processo de construção da autoestima negra se torna extremamente prejudicado quando, além da falta de identificação, temos de lidar com a solidão e o isolamento. Muitos de nós tivemos de passar pela infância e adolescência sendo o único negro da sala de aula, da turma de amigos e, quando adultos, o único negro do escritório, o único a ocupar um cargo de nível intermediário ou de liderança.
A falta de representação nesses locais antes completamente restritos aos brancos acaba por dificultar nosso processo de autoidentificação; reconhecer-se negro num espaço hegemonicamente branco se dá através de um processo traumático e doloroso, processo no qual não temos o amparo e acolhimento de um dos nossos.
Não são raros os casos de irmãos que, pela pouca ou nenhuma convivência com outros negros, tiveram sua autoestima prejudicada e sua conscientização e empoderamento represados.
Ser o único negro da turma é ser o estranho, o diferente, o deslocado e, por que não dizer, o feio também, porque sim, sabemos qual é o padrão de beleza que nos é imposto.
Quando fazemos o recorte de gênero, o processo se torna ainda mais doloroso. Meninas negras desde muito cedo sentem o peso do que é não pertencer ao padrão eurocêntrico de beleza, experimentando a dor do que é ser preterida pelos outros meninos. Ou seja, desde a mais tenra idade somos ensinadas que o amor é só para as outras.
Por mais que não possa parecer, por mais que estejamos em menor número nesses locais, somos maioria na população sim!
Mas também somos a maioria nos presídios, a maioria em situação de rua, a maioria assassinada nas periferias desse país.
Soa quase como uma transgressão ocupar espaços que nos são estruturalmente negados ao invés de preenchermos as estatísticas assombrosas da qual o nosso povo faz parte.
Ao reconhecer que colhemos certas vantagens em relação ao grosso da população negra, não queremos dizer que estamos livres de sofrer com o racismo. Como bem sabemos, um negro rico ainda é lido socialmente como negro. Barack Obama tornou-se presidente da maior potência mundial e ainda assim é tão vitima do racismo quanto o resto de nós. Apesar das vantagens sociais que colhemos sobre a maioria de nossos irmãos, a branquitude sempre nos lembrará do que somos e de onde, por via de regra, deveríamos estar.
Reconhecer privilégios é a base para pautar qualquer situação de desigualdade. Somos a exceção e temos de nos tornar a regra, temos de pintar de negro esses locais construídos sobre o vermelho do sangue daqueles que abriram caminho para que chegássemos até aqui.
Temos de tornar como nosso problema as condições de desigualdade sob as quais vivem os negros no Brasil, sobretudo os não privilegiados, aqueles que sobrevivem diariamente tentando ressignificar seu próprio destino, aqueles que sequer fazem parte das pequenas porcentagens de negros universitários, intelectuais, doutores.
Torna-se mais que indispensável para pontuar as necessidades da população negra entender que somos coletivamente iguais, sendo uns menos iguais que os outros e este é o primeiro passo para caminhar rumo ao mundo de igualdade e justiça por que tanto lutamos.