Tem dias que não tem lágrimas

Tem dias que não tem lágrimas pra reparar o que o mundo fez com ela. A cabeça lateja, pra sair uma lágrima o corpo todo arde. Às vezes ela acha que pode ter estourado uma veia por causa da dor intensa, mas os médicos dizem que é psicológico. É stress, ansiedade, olho inchado, nariz vermelho, outro analgésico.

“Você só tem vinte e poucos. Não tem nada errado.”

Ela olha pro seu eu de doze anos na foto. Desculpa, desculpa pelo o que o mundo fez com você. Queria saber ter tido empoderamento naquela época. Queria ter tido uma habilidade e força que nenhuma criança deve ter. Queria não ter perdido tudo.

Ela é a negra que o mundo todo fala mas não enxerga. Enxerga, mas não liga. A tal solidão da mulher negra. Tem tudo, não tem nada. Incerteza se a grana vai vir no próximo dia, certeza que o amor nunca virá.

Daí ela se esconde, selfie pra lá e pra cá, o mundo acredita. Ataques, falta de empatia todo dia.

Feia, seu nariz é muito largo pro seu rosto. “Feia, sua boca é grande mais.” “Feia, do que adianta ser parda com esse cabelo duro?” “Feia, agora pra completar está gorda.” “Feia, nem negra de verdade é.”

A música favorita é aquela da Nina Simone, I Got Life. Ela tem si mesma. Ela é o próprio pai, a própria mãe, a própria amiga, a própria irmã, a própria namorada. E desempenha esses papéis com perfeição desde os quatro  anos quando te chamaram de “Tia Anastácia” por usar um lenço na pré-escola. Ou foi aos sete, quando ela gritou pra mãe “meu cabelo não ficou igual das meninas da escola”? Ou mesmo aos quinze quando deu o primeiro beijo, só pra ser informada logo em seguida que o menino fez foi um favor pra ela, e que na verdade foi obrigado.

E tudo isso se repete, a cena muda, os personagens mudam, mas o racismo é o mesmo.

Mas sem desistir. Sua mãe negra não cuidou dela com tanto esmero pra isso acontecer. A mãe é seu maior motivo, e todo dia ela chora ao som do mantra “e se ela se for?”.

O maior desejo ainda é encontrar a tal empatia, a sororidade, a luz no fim do túnel. No momento ela continua dançando ao ritmo desse mundo feroz.

Imagem de destaque – Tristeza, Enciclopédia Metallum: The Metal Archives Sadness.

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