(Para ler ouvindo “I’m a black man in a white world”, de Michael Kiwanuka)
“Onde há ruínas, pode haver um tesouro” a frase grafitada nos vagões dos trens que ligam o Bronx a Manhattan parece ser a grande síntese da história apresentada pela série The Get Down, mais cara produção da história da Netflix e mais promissora na estética musical. Em seis episódios o programa revela o nascimento da cultura hip hop, num local onde o estado vira as costas, a especulação imobiliária incendeia prédios e as oportunidades são escassas para uma juventude negra potente e criativa, sendo a marginalidade um espaço misto de resistência e sobrevivência. Qualquer semelhança com bairros brasileiros nos anos 2010 são mera coincidência.
Com um elenco majoritariamente negro, a série pode mais gerar identificação com os conflitos e desafios de meninos e meninas das grandes metrópoles brasileiras, que qualquer produção nacional – como Malhação, que em 17 anos de existência, finalmente tem uma protagonista negra, que sofre humilhações em grande parte das cenas que figura e vive uma história de amor improvável com um garoto burguês zona sul (afinal, quantas vezes vemos um rapaz loiro tratando com galanteios românticos uma moça negra faxineira na academia? Quantos homens brancos trocam sua namorada princesa por uma jovem negra, por mais bela e inteligente que esta seja? Bem, isso é tema para outro artigo, não sobre televisão). Embora seja produzida pelo hiperbólico australiano Baz Luhrmann, diretor de filmes como Moulin Rouge, Romeu + Julieta (anos 90), Transpotting e O Grande Gatsby, a primeira parte demonstra um conhecimento respeitoso da cultura hip hop, do contexto social que dá origem ao movimento, que se espraia mundo afora e aponta uma nova forma de expressão, calcada nas bases da música (a figura do DJ), a poesia, o grafitte e a dança (o break). Colaboraram como consultores, agregando informações e a experiência de quem viveu aquele período, nomes como Nas, Grandmaster Flash, Kurtis Blow, DJ Kool Herc, Afrika Bambaataa, entre outros.
Esse aspecto da convocação de consultores e colaboradores é fundamental para constituição de uma obra que seja verossímil, crível e demonstra imenso respeito e cuidado com um cenário cultural, que nem sempre é amplamente dominado pelo roteirista ou diretor. A contribuição de quem tem expertise naquele período histórico evita os furos tão frequentes, que vemos em telenovelas e produções que querem assimilar regiões e grupos sociais, dos quais os criadores não conhecem profundamente nem fazem parte. Vivemos num tempo em que não se aceita mais falar por, mas especialmente falar com: garantir a pluralidade de vozes, a representação consistente, que garantem um produto de entretenimento que gera identificação e deleite na fruição.
Todo apuro estético, seja na escolha dos filtros que nos remetem aos filmes dos anos 70, seja na impecável direção de arte, na trilha sonora irretocável, seja no cuidado empregado no roteiro, na verossimilhança das situações expostas e na inventividade que a câmera nervosa do diretor, tão amante do ritmo frenético, do exagero e dos êxtases visuais, que imprimem um ritmo excitante aos episódios, transitando entre a magia do romantismo no romance entre o poeta Ezequiel e a cantora Mylene, seja na fantasia do herói decaído Shaolin Fantastic. Cenas ficcionais convivem com inserções de registros documentais da Nova York dos anos 70, misturando personagens reais e decisivos na construção do movimento, além de situações reais como a grande pane elétrica no verão de 77, apontadas por alguns como decisiva para acesso aos equipamentos eletrônicos entre as populações mais empobrecidas da cidade.
The Get Down consegue ir além de apresentar o movimento cultural do hip hop, mas se constitui num importante documento histórico que revela uma Nova York negligente com a comunidade negra e latina, corrupta e de costas viradas para um bairro, em que anos antes o mais inspirado projeto do Estado foi a distribuição de drogas e implantação de um novo projeto genocida. Convive com os anos iniciais do hip hop, a cultura Disco, festiva, politicamente frívola e inaugural do que veio a se tornar a música eletrônica e a raiva punk e branca, de um período onde a juventude, de todas as cores, ansiava por mudanças, voz e ruptura com modelos, tão excludentes quanto sufocantes. Num dos momentos mais belos da série, o universo dos movimentos LGBT é apresentado, no encontro do personagem Dizz com todo o glamour de um mundo onde os gêneros já não são fixos, as afetividades não prescindem de um endereçamento pré-definido e a descoberta de sua própria sexualidade, num beijo com um outro garoto, o grafiteiro Thor: uma maneira poética e musicalmente contagiante de mostrar toda uma mudança comportamental vivida intensamente naquele período, de forma tão pulsante e potente nos corpos e na política.
É precioso falar também do universo vivenciado pela personagem Mylene, negra e porto riquinha, vivida pela talentosa jovem atriz Herizen Guardiola. Ambiciosa, ela convoca Ezequiel (Justice Smith) para coragem e foco. Não se encaixa no modelo de mocinha, pois para além de esbanjar sensualidade e jogar com isso, Mylene é focada, batalhadora e move todas as forças possíveis para realizar seu sonho: ser cantora de disco music. Mesmo que precise enfrentar seu pai, um pastor, tão moralista quanto hipócrita. Mylene protagoniza um modelo feminista, sem para isso evocar discursos prontos – ela posterga o amor, pois tem um sonho, uma ambição, uma vontade de mudança. Ela não se permite objetificar, sem com isso vestir o discurso de puritana. Ela própria vai na contramão das amigas, que tem no sexo uma moeda de troca, mas também uma submissão. O grupo que lidera ao lado das amigas Yolanda e Regina é tão impetuoso e integro quanto o dos meninos na sua aventura pelo rap.
The Get Down faz um retrato de uma época, escolhendo as devidas cores e tons do seu tempo, de forma politizada e crítica, sem perder o lugar do humor, da leveza, sem se tornar uma obra panfleto. É um enorme prazer estético, artístico, provocante. Nos convoca a conhecer mais do universo hip hop, de toda música produzida naquele momento e as reverberações que ainda vibram sobre nós. Para nós de cá, tão invisíveis quanto porcamente representados numa teledramaturgia que não se reinventa e nem conhece a riqueza de um brasil para além da zona sul carioca, mais nos vemos representados numa produção gringa. Mais reconheço os rostos dos adolescentes cheios de curiosidade e vontade de deixar sua marca no mundo nesta produção, do que na programação brazuca, que bebe nos estereótipos e se embriaga. Ainda vale mais a pena dedicar-se a ver a ruptura do maniqueísmo presente em How to Get Away with a Murder e Scandal, ambos da dramaturga e produtora executiva Shonda Rhimes, nas quais a complexidade de personagens multiétnicos e negros é abundante e inquietante, trazendo diferentes dimensionalidades, mostrando indivíduos ambivalentes, plurais. De cá, o dever é garantir que escritores e escritoras negras produzam e ocupem espaços decisivos. Que produtores executivos e elencos também sejam pessoas negras e possam abrir espaço para vozes mais coloridas. E assim, possamos nos deliciar por nos ver, representados na TV da nossa terra. Seguimos.
Imagem destacada – @TheGetDown