Com muito entusiasmo, iniciei o ano de 2017 lendo a biografia de Malcolm X, escrita
pelo historiador norte-americano Manning Marable, ganhador do prêmio Pulitzer de
2012. A partir da famosa autobiografia redigida por Malcolm X e Alex Haley, Marable
fez um trabalho imenso de pesquisa que consumiu mais de 20 anos, muitos
pesquisadores, atravessou um transplante duplo de pulmões e veio a falecer antes de
receber o laureado prêmio pelo incrível livro de quase 700 páginas. A história de
Malcolm, suas palavras diretas, sua agudez de análise, seus maravilhosos e polêmicos
discursos, suas viagens, sua importantíssima militância… lendo as palavras de Marable
acompanhamos tudo, vivemos dia após dia sua trajetória, admiramos ainda mais quem
foi Malcolm X, assassinado há 52 anos.
Pois é, um livro sobre um ícone negro, muito bem escrito por um historiador negro. E,
capítulo após capítulo, nos deparamos com a palavra denegrir. Repetidamente.
Poderia ser difamar. Poderia ser rebaixar, aviltar, injuriar, caluniar, desacreditar,
desonrar, desabonar. Um adjetivo por capítulo, quase. Mas não. Optou-se por uma
palavra que transborda preconceito. Quantas pessoas leram o livro antes da
publicação e ninguém se incomodou com este termo racista num livro sobre um ícone
negro? Esta tradução que naturaliza o racismo liga-se também à história de
preterimento de profissionais negros, no caso tradutores, do grande mercado
editorial.
Entrei em contato com a editora, visando corrigir próximas edições. Não obtive
resposta.
As palavras, assim como as narrativas, não são neutras. São históricas. São políticas.
Tornar negro – denegrir – se transformou em xingamento, em nossa língua racista,
idioma oriundo de um país explorador e colonizador, escravocrata. A mim,
pessoalmente, tornar negro é elogio. A mim, negra de pele clara, quero mais é que
denigram-me! Eu mesma denigro-me cotidianamente, ao não alisar meu cabelo, ao
não me envergonhar do meu nariz, das minhas características negras. Mas
infelizmente no senso comum não é assim, o significado da palavra, no dicionário, é
difamar. E cabe a nós, usuários da língua, não propagarmos palavras de cunho racista.
Às editoras, que lucram em cima disso, que vendem histórias, como esta história de
um homem negro, escrita por outro negro, cabem redobrada atenção, pois as palavras
são seu material de trabalho. Não espalhar preconceito deveria ser a principal diretriz.
Enegreça, Companhia das Letras. Torne cada vez mais negro seu time de tradutores,
revisores e editores. Só assim tais absurdos poderão ser evitados. E, por favor, retire
quaisquer “denegrir” de seus livros, todos eles. Não siga agredindo seus leitores
negros com palavras racistas nos seus livros.
Imagem de destaque: Blog do Pedro Eloi