Falar sobre a Estocolmo é empreitada complexa e certamente seria impossível fazer isso de maneira profunda após ter passado três dias na cidade durante uma viagem de imprensa e intercâmbio em companhia de Semayat Oliveira que aconteceu em função da campanha Armadas de Informação promovida Diálogos Nórdicos, um projeto das embaixadas nórdicas no Brasil (Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia) e do Instituto Cultural da Dinamarca em parceria com o Instituto Patrícia Galvão, Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, Blogueiras Negras, Mídia Índia, Ação Educativa e Nós, Mulheres da Periferia.
AVANÇAMOS BASTANTE – NÃO?
O contato com Estocolmo se estreitou desde a minha participação no Seminário Internacional Equidade de Gênero em Brasília. O seminário contemplou uma exposição chamada Igualdade de gênero, avançamos bastante – não?, indagação que possivelmente motivou Per-Arne Hjelmborn, então Embaixador da Suécia no Brasil a afirmar que “Embora de acordo com muitos rankings internacionais a Suécia ocupe as mais altas colocações em questões de gênero, estamos longe de estar prontos. Como o título da mostra sugere, sim, nós percorremos um longo do caminho, mas nós ainda não terminamos”.
Essa seria uma das perguntas fundamentais que tinha na cabeça durante toda nossa viagem e que uma perspectiva interseccional nos ajudou a nos aproximar um pouco mais de uma sociedade complexa e de suas narrativas construídas sobre a igualdade de gênero, através do diálogo com mulheres vivendo em diferentes realidades.
VOCÊ FALA SUECO?
A experiência de viajar para outro lado do mundo, especialmente a Europa, nos faz olhar para a nossa realidade com outros olhos. E uma delas é a ferramenta com a qual nos comunicamos, o idioma. A gente sabe que no Brasil, falar um idioma estrangeiro muitas vezes define uma oferta seletiva de oportunidades.
Esse não é um aspecto qualquer da viagem, uma vez que o domínio do idioma é crucial e costuma ser um obstáculo para que mulheres imigrantes possam construir e vivenciar a plena cidadania e até mesmo a espiritualidade nos países escandinavos onde o debate sobre as fronteiras é inflamado, muitas vezes associando o aumento das taxas de violência contra a mulher por exemplo, à presença de imigrantes.
UM IDIOMA UNIVERSAL: SUMBU CHANTRAINE TEMO
Um dos momentos mais emocionantes de nossa viagem foi o encontro com outras mulheres negras da diáspora, durante toda a viagem. Essa foi minha primeira viagem internacional como feminista negra e durante todo o caminho encontramos mulheres com quem nos comunicávamos muitas vezes através do olhar. Outras vezes, quando a conexão falhava e não podíamos contar com isso para nos locomover, éramos acolhidas e mais de uma vez uma delas nos acompanhou até nosso destino quando estávamos completamente perdidas.
Uma delas foi Sumbu Chantraine Temo que conhecemos por acaso, durante um evento de literatura negra que celebrava Jamaica Kincaid no Kalangu Café em Estocolmo. Gostaria de compartilhar com vocês a entrevista que ela nos concedeu, com amor, nessa casa que se tornou a nossa casa. Nos comunicamos em inglês mas o idioma oficial dessa conversa foi a hospitalidade e a cumplicidade, a própria diáspora.
BN _ Nós sempre iniciamos as entrevistas no Blogueiras Negras perguntando para as mulheres quem elas são. Você poderia me dizer seu nome, sua idade, sua atuação profissional e quem é você?
Meu nome é Sumbu Chantraine Temo, tenho 31 anos e sou formada em jornalismo mas trabalho como facilitatora, líder de projeto.
BN_ Você estudou Jornalismo, poderia nos dizer um pouco mais sobre isso? Porque no BN, algumas autoras são jornalistas e outras não. Gostaria de saber como as pessoas estudam Jornalismo aqui na Suécia e como é ser uma mulher negra estudando Jornalismo.
Na verdade, não queria fazer isso. Jornalismo não era a minha primeira escolha, gostaria de ser uma escritora de romances, porque adoro escrever, era o que eu gostaria de fazer. Mas como tinha de escolher uma profissão séria, ser uma mulher adulta, não poderia ser uma escritora, isso foi o que minha família disse. Então comecei a me perguntar: é possível apenas escrever? Então escolhi Jornalismo.
Sou muito curiosa como pessoa e gostaria de de entender coisas, fazer perguntas e por ai vai. Então achei que seria lógico estudar Jornalismo. Mas não trabalhei realmente como jornalista porque senti que, como posso dizer isso, quando me tornei jornalista foi porque queria comunicar, colocar diferentes grupos de pessoas para entender umas às outras, ao invés de escrever que fulano fez isso ou aquilo. É fácil culpar as pessoas mas você precisa entender porque essas coisas acontecem. Porque as pessoas agem de certa maneira mesmo se parecer horrível ou ultrajante, existe uma razão para pessoas agirem como agem.
E queria mostrar essas estórias mas quando eu comecei a trabalhar, percebi que a mídia é muito mais sobre vender e entendi que vivemos num mundo capitalista. Quando você começa a vender algo que deveria ser usado para resolver questões entre pessoas, acredito que a mídia tende a ser tornar mais sensacionalista, mais realmente dividindo as pessoas que unindo. Afinal essas são as coisas que vendem mais. Se você escreve sobre conflitos de uma maneira que é excitante, obscura, como um thriller, isso vende mais jornais. Para isso isso se tornou um paradoxo, oh, é assim que a mídia se parece? Vou trabalhar e apoiar isso? É por isso que não trabalhei com jornalismo. Não sinto que é isso que eu quero fazer, não quero trabalhar dessa forma.
Agora trabalho em projetos que são como podemos dar uma câmera para alguém que não tem treinamento jornalístico mas que pode mostrar sua vida cotidiana. Dar esse poder para alguém porque se as pessoas tem seus próprios recursos, as pessoas podem contar suas próprias estórias, é nisso que estou interessada em trabalhar agora.
BN_ Pode nos falar um pouco sobre a sua família?
Vim para cá com a minha família quando tinha 3 anos de idade e fomos para uma pequena cidade da Suécia.Cresci com meu irmão mais novo que nasceu aqui e meu irmão mais velho. Ou seja, 3 irmãos na casa. O restante dos meus irmãos ainda estão no Congo pois é difícil vir para cá com uma família grande, conseguir asilo. Então meus pais decidiram vir com os mais novos e conseguir os papéis. Apenas sei que tenho irmãos e irmãs no Congo, mas não sei muita coisa.
Vir para cá foi uma grande jornada de certa maneira, uma longa jornada até me tornar aceita pela sociedade, a luta dos meus pais para se adaptarem, tem sido uma longa jornada. E eu penso que me afetou, entendendo o que significa ser uma pessoa de fora, e o que acontece com você como pessoa quando você não é aceita por outras pessoas. Agora eu vejo que muito do trabalho que desenvolvi e quem eu sou tem muito a ver com superar obstáculos.
BN_ Você se identifica com a palavra imigrante, em ser uma mulher imigrante?
Sim, me identifico, me identificaria… Estou hesitante um pouco porque tenho pensado bastante sobre isso e sinto que minha vida… Como posso dizer? Sou imigrante, tenho relação com o tema mas ao mesmo tempo sinto que sou mas existem muitas camadas na sociedade, por exemplo meus pais são trabalhadores mas por causa da minha educação eu possivelmente seria da classe média. Eu sou negra mas ao mesmo tempo eu falo fluentemente Sueco e conheço a Suécia, quase como se fosse uma nerd sobre o assunto. Sou Congolesa mas não vivi realmente lá, onde estive apenas duas vezes. Sou então realmente Congolesa? Tem tanta coisa em mim que são de uma natureza híbrida, então é complicado para mim dizer que sou isso ou aquilo 100%.
BN_Como você vê a imprensa a partir de sua experiência multifacetada? O que você diria sobre a imprensa Sueca? Talvez como as mulheres negras são apresentadas…
Você precisa entender a política Sueca. Talvez outros países olhem para nós e pensem como são progressistas e sim, nós somos progressistas em muitos aspectos comparados com outros lugares, mas não é aberta, é progressistas em certas visões. Quando falamos por exemplo sobre direitos humanos, sim há direitos humanos na Suécia definitivamente, mas há algumas limitações eu diria. Por exemplo sinto a falta de vozes críticas na mídia. Pode ser muito potente, porque é a favor de direitos lgbt e isso pode ser muito positivo. Mas quando a mídia é contra a imigração isso pode ser muito negativo. Isso é um pensamento de um grupo que pode ser muito amedrontador para mim.
Isso pode ser positivo mas também pode ser definitivamente negativo, se você olhar para a questão da imigração por exemplo. Há alguns anos atrás houve um fluxo de imigrantes vindo para a Suécia e imprensa não queria soar racista. E fazendo dessa forma, acredito que queriam adaptar sua imagem de si mesmos para ser muito aberta mas isso mudou em um ano. Como podemos ser tão racistas? Nós mudamos tão rápido.
A imprensa e a política Suecas têm a tendência de querer ter uma autoimagem que pretende ser mas de fato não é. Não acredito que mulheres negras existam na mídia realmente. Corpos negros tem sido usados recentemente em comerciais, como se estivéssemos fazendo diversidade, nós somos tão abertos, estamos fazendo isso tão radicalmente colocando uma pessoa negra nisso. Sinto que mulheres negras tem se tornado a nova tendência na mídia mas sinto que não é para mudar as coisas é uma coisa de marketing.
BN_ Você acredita que é possível usar isso como ferramenta à nosso favor?
Isso realmente depende da pessoa. Sim é possível mas isso depende de quem essa pessoa negra é e o quanto ela está segura de si. Como se uma pessoa negra e você de repente se torna… O nome disso é token, é sobre isso que é. E quando você se torna um token isso pode ser lisonjeador, você está sendo vista, você conseguiu essa trabalho, você está fazendo isso e aquilo e as pessoas querem te convidar para shows e esse tipo de coisa mas acrediro que você pode acabar se perdendo nessa fama. Especialmente se o seu trabalho começa a se tornar como se você precisasse ser visto dessa maneira e foi dessa maneira que você construiu seu ativismo, significa que você tem essa relação estreita com a mídia ou quem quer que seja.
Mas se você é alguém que não precisa dessa fama para seu próprio ego, mas consegue entender que é ok se jogar dessa maneira, porque acredito que ser radical não vai abrir as portas para ninguém, algumas pessoas podem fazer isso. é preciso jogar o jogo e ser esperto sobre ele. Se você pessoalmente pode jogar o jogo, perceber que está sendo manipulado e ainda assim jogar com eles, então podemos fazer. Se você puder deixar de lado a fama, existe um caminho aí.
BN_ Você abriu esse lindo lugar. Poderia nos falar um pouco sobre essa jornada?
Isso demorou muitos anos, eu diria que dez anos… Talvez menos (rindo). Sinto como uma jornada muito longa e fragmentada, não que eu olhe muito para trás para entender o que me trouxe até aqui. Esse lugar existe porque queria me conectar com as minhas raízes, como disse fui criada numa cidade pequena e não tinha muito contato com outras pessoas negras. E até hoje quando estou entre pessoas negras sinto que não compartilho as mesmas referências sobre isso ou aquilo, oh, será que sou negra o bastante? Então esse foi o meio de ficar mais calma comigo mesma e estar com outras pessoas.
Porque posso bem dizer que sou negra mas existem também narrativas sobre a negritude nas quais acredito. Essa foi a mudança que acontece. Mas o Café (Kalangu Café) aconteceu quando fui à primeira vez ao Congo e conheci minha avó. Nós falamos idiomas diferentes e eu não conseguia entender a sua, a gente conseguia se comunicar mas não através dos idiomas. Ela ia até o quintal e me mostravas diferentes comidas e adoro comer, ficávamos lá pegando isso e aquilo. E assim falávamos. Isso se tornou um ritual, você dedica seu tempo para limpar toalhas, pegar os feijões certos e por aí vai e ao mesmo tempo senti a sua estória. Então senti que a comida é se reunir em torno do fogo.
O mesmo com a arte, sinto que é uma ótima maneira de expressar a si mesmo. Achava que era uma coisa muito elitista, por exemplo, o que é arte, o que você quer dizer com isso, para que serve? Agora compreendo que se você faz algo que você gosta e você está nisso, isso é arte. Pode ser cozinhar, falar com alguém, por isso quero combinar comida e arte dessa maneira, ter as pessoas vindo aqui, você também é um artista. Só por sermos humanos podemos fazer arte. As pessoas não tinham que definir o que a arte é, se você gosta de fazer, é arte.
BN_ O que significa o nome Kalangu?
Pensei que preciso ter um nome mas não poderia ser óbvio, Ubuntu, Kumbayah mas ainda assim queria um nome que representasse minhas raízes. De alguma maneira cheguei a Kalangu que é o nome desse lugar hoje e realmente gostei. É como um tambor falante, é usado na Nigéria. É um tambor que era usado e ainda é, não sei se com a mesma frequência nos dias de hoje, para enviar mensagens.
Dependendo de como você o aquece, é possível reproduzir palavras. Para tocar esse tambor você precisa ser realmente um grande mestre. Então eles aquecem os tambores e enviam mensagens. E essa mensagem será ouvida na próxima cidade e será enviada para outra e isso viaja por quilômetros e quilômetros. Podem ser mensagens sobre um falecimento ou talvez o nascimento de uma criança, um casamento, podem ser diferentes tipos de mensagem.
Sinto que quero que esse Café seja assim. Nós viemos aqui, nos encontramos, nos falamos. Estar aqui com você e conversar é um jeito de enviar uma mensagem, estou enviando uma mensagem para você e você voltará para sua cidade e carregarei você comigo através disso. Realmente também estou ouvindo o que chega até aqui, prestando atenção mas também ousando em expressar.
BN_ E que mensagem você enviaria para o outro lado do Atlântico, para as mulheres que vão ler esse texto?
Talvez isso soe como um clichê que nós somos feitos de amor e nunca devemos esquecer isso e acredito que nosso propósito é amar.
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Imagem de destaque: Sumbu Chantraine Temo, Charô Nunes