Domingão de meus deus e lá estava eu junto ao computador, inoperante. Decidi ligar a televisão para espairecer. Não queria ver mais um episódio de Star Trek ou um filme de Kubrick (que estou reavaliando como um dos meus diretores favoritos). Muito menos ver um punhado de notícias que me deixariam cada vez mais nervosa.
Já havia visto todos os episódios disponíveis de A primeira dama, agora que estou órfã de The last O.G. E quando estou quase desistindo e voltando para o computador, sou apresentada a uma série que nem em nenhum milhão de anos luz teria chamado a minha atenção num mar de títulos disponíveis no Paramount +, O homem que caiu na Terra (2022).
Uma refilmagem de filme homônimo de 1976 que mostra um alienígena em busca de água e se torna o empresário de tecnologia Thomas Jerome Newton, interpretado por David Bowie.
A série tem todos os ingredientes de Arquivo X e não por acaso Star Trek e muito mais. Porém é o protagonismo dos atores Chiwetel Ejiofor e Naomie Harris, que interpretam respectivamente o alienígena K.Faraday e a cientista Justin Falls, que está no centro do debate.
A verdade é que escalar negros nem sempre significa que suas personagens serão posicionadas, terão voz. Mas dessa vez temos um ponto de atenção mesmo aqui, do outro lado do planeta onde o homem caiu.
Alerta negro, Isso é política
Numa atuação verdadeiramente antirracista (a palavra do ano passado) e afirmativa, a representatividade não acontece quando se coloca um corpo negro no centro de uma narrativa de maneira simplória. Não se trata de “um exercício benevolente” como disse o próprio (e lindo) Ejiofor. É muito mais e completamente sobre protagonismo.
Se você se interessa por tecnologia, sabe por exemplo que não somos nós quem fazemos aqueles grandes anúncios em que pessoinhas como Steve Jobs e Bill Gates se tornaram parte de uma cultura polarizada (rá) entre Apple e Miscrosoft. Em tempos de bigtéquis, o que significa ver nosso alienígena, no corpo de um homem negro, fazendo o mesmo? Que idéias e ideais estariam em jogo?
Quem se lembra que Chris Rock (que estava do lado branco da força ao fazer piada com Jada Pinkett Smith) foi candidato à presidência dos Estados Unidos antes de Obama ouquem diz Wakanda pra sempre, sabe como os pretos lá de cima estão fazendo politica rompendo com imagens de controle.
Mas para falar de como isso acontece em O homem que caiu na terra, preciso fazer um parênteses sobre outro produto de ficção-científica dessa tal de CBS Studios Inc, que integra a unidade CBS Entertainment Group da Paramount Global. E que, diga-se de passagem, também tem em seu portfólio Todo mundo odeia o Chris e Além da imaginação (cancelada depois de duas temporadas sem que a gente aqui tivesse a oportunidade de ver, viu Jordan Peele) além da própria Star Trek.
Star Trek e suas inúmeras linhas do tempo, filmes e seriados giram em torno de viagens interestelares, num futuro mais ou menos próximo em que os governos terrestres se organizam numa agência de cooperação, pesquisa, defesa e diplomacia chamada Frota Estelar. Por sua vez, a Frota integra a Federação Unida de Planetas, com governos espalhados por diversas galáxias.
Até aí nada de mais, querida almirante.
O que nos interessa é que a franquia, criada no começo dos anos 1960 por Gene Roddenberry (uma espécie de nêmesis de Erich von Däniken, aquele lá dos deuses astronautas) apresenta aventuras no espaço profundo de humanos e alienígenas que foram supostamente pensadas como alegorias politicas materializadas através de viagens à galáxias distantes, muitos tiros quando a diplomacia não funciona e dúvidas sobre novas formas de vida.
É sobre a nossa capacidade de estar com quem é diferente. E como essas personagens costumam ser cisheteronormativas e brancas, não fica complicado de entender quem são os outros.
Outra coisa que precisamos salientar é que Roddenberry não conseguiu conceber a organização tanto da Frota Estelar quanto da Federação para além de uma estrutura militarizada e americanizada. O prefixo de todas as naves da terra inteirinha passou a ser o emblemático USS, por exemplo. O mesmo da Marinha norte-americana.
A frase “isto é uma ordem” frequentemente é usada para preservar uma rígida cadeia de comando, mesmo que as instruções nem sempre sejam bem intencionadas. Tão ou mais importante que quaisquer direitos civis altruístas que a Frota gosta de propagandear, a linha que separa quem comanda e quem obedece é profunda.
Para algumas personagens, pelo menos. O insubordinado Capitão James T. Kirk (William Shatner) foi recompensado por trapacear no famoso teste Kobayashi Maru, que não tem uma solução possível senão a derrota. Coisa que ele jamais poderá admitir nessa ou em qualquer outra galáxia. Mas a nossa Capitã Michael Burnham (Sonequa Martin-Green) foi acusada de motim (e complexos messiânicos pela crítica “especializada”) por tentar salvar uma nave espacial. Ora vejam.
Audaciosamente ir aonde nenhuma mulher negra jamais esteve
Ainda assim, a franquia Star Trek ficou conhecida por televisionar o primeiro beijo interracial da televisão norte-americana na Série Clássica (1966- 1969) entre a Tenente Uhura (primeira personagem que não mostrava uma mulher negra numa posição evidente de subalternidade e considerada um marco por Luther King, interpretada por Nichelle Nichols) e o Capitão Kirk.
Um começo promissor para sua época, mas insuficiente para abreviar mais de meio século até que uma mulher negra fosse finalmente escalada como capitã de uma nave estelar. Foram três temporadas de espera, o mesmo tempo que o Capitão Ben Sisko (Avery Brooks) levou para ser promovido a seu posto, mesmo sendo a personagem principal da série, assim como Burnham.
Coincidência acontecer a mesma coisa com as duas únicas personagens negras que se tornaram capitãs, diriam alguns.
E atenção, se não fosse esforço dos poucos mas bravos e talentosos profissionais negros da produção de Star Trek Discovery (2017 até o presente) como Olatunde Osunsanmi, Glenise Mullins, Kemp Powers, Gersha Phillips e sobretudo Sonequa Martin-Green que teve de comer o pão que o alto comando da Frota amassou, Burnham possivelmente não poderia “audaciosamente ir aonde nenhum homem (branco) jamais esteve”.
A própria personagem diz isso ao afirmar que “teve ajuda” quando é informada que será promovida a uma função que já exercia. O que nos faz perguntar se a Frota pagou devidamente seus direitos trabalhistas e se eles existem nesse futuro, mas sigamos.
Como audiência sensível pudemos sentir a emoção da atriz na cena em que ela finalmente assume sua primeira missão como capitã. Sua trajetória é a nossa quando estamos falando do primeiro emprego ou de um posto de liderança. Foi daora.
Star Trek Discovery também ficou conhecida por apresentar as primeiras personagens não binárias e homoafetivas da franquia, além de ter sido a primeira vez (pasmem) que um palavrão foi dito neste universo. Outro destaque foi uma cientista (branca) gorda em sua tripulação que infelizmente já deixou a nave, assim como uma das personagens não binárias.
Narrativas que significaram avanços necessários ao mesmo tempo tímidos se a gente considerar a pretensão original de Roddenberry. Afinal não é sobre isso que giram os debates ao redor do mundo sobre a erosão de diversas democracias e o colapso climático que já faz parte de nossas vidas?
O corte dessas personagens desperdiçou talento e possibilidades narrativas sem nenhuma novidade, dada a reação violenta de parte de uma audiência, cisheteronormativa conservadora, cristã e branca, acostumada a ver homens brancos no centro da narrativa. Mesmo que a balança ainda esteja a seu favor: brancos ainda representam incríveis 69% das pessoas no programa.
Ainda que tenha antecipado a primeira vez mulher negra norte americana pilotou uma nave espacial e a viagem da primeira astronauta negra norte-americana até a estação espacial internacional (obrigada Sian Proctor e Jessica Watkins) muitas fãs de Star Trek Discovery como eu esperavam muito mais.
O protagonismo negro em O homem que caiu na terra
Ainda assim, estão dizendo por aí que a franquia foi dominada por um bando de esquerdistas (brancos)… Como o co-criador da Star Trek Discovery Alex Kurtzmann e que agora também assina O homem que caiu na terra.
Depois de ter cometido um dos maiores equívocos de sua carreira escalando Tom Cruise para protagonizar A múmia (2017), Kurtzmann aprendeu algumas coisinhas. Inclusive com a trajetória de Martin-Green que dobra o espaço-tempo e salta num duplo twist carpado de uma personagem diluída em um elenco branco até a retomar a narrativa que a assume a capitania que é sua por mérito (a gente também sabe brincar disso viu).
Algo que os executivos da série não esperavam e certamente não queriam. Os planos nunca foram ter uma capitã negra. Felizmente a audiência se manteve interessada, sendo capaz de encurralar seus criadores a fazer o que evitaram ao máximo. Não havia outro caminho possível além de oferecer ao público o que ele queria e a franquia precisava, sob pena de ter o show cancelado.
O pulo do gato de Kurtzmann e da própria CBS Studios em O homem que caiu na terra é que ele avança com as personagens de Ejiofor e Harris. Mas não ao ponto de ser consistente (e ele sabia disso). Em outras palavras, a indústria está aprendendo que discussões de raça, gênero e identidade de gênero, orientação sexual, territorialidade e outras questões caras ao debate da colonialidade vendem. E sabem que não sabem fazer isso.
Criadores brancos jamais alcançariam essa dimensão sem a presença e colaboração primeira de pessoas negras com poder de voz que as acompanhem e direcionem nessa tarefa como a co-criadora da série Jenny Lumet, com raízes na luta pelos direitos civis e sócia de Kurtzmann em uma produtora.
Possivelmente tudo que há de preto e bom nessa série, como Justin Falls, acontece por causa dela para quem “as mulheres de cor são uma das populações mais vulneráveis do planeta e essa população vulnerável tem a compreensão mais clara de como o mundo realmente se parece.”
Uma política de identidade desnecessária?
Como diz Jordan Peele, o público tem espaço para“fazer o seu trabalho” ou quase, levantando debates sobre o caráter da série ser ativista ou não. Rá!
Em todas as cenas em que o alienígena K. Faraday tenta cumprir a sua missão, enfrenta a polícia, se adapta às mínimas coisas de seu cotidiano ou repete que é um imigrante, o público negro e o branco é confrontado, quer queira, quer não, com a violência com que esse preto é tratado pela sociedade.
O que explicaria sem qualquer novidade algumas das críticas racistas que a série tem recebido no IMBD tentando apagar ou menosprezar o protagonismo negro da série. Muitas vezes preocupados com o fato de as personagens brancas serem esquisitas, cruéis e desinteressantes. O que de fato são.
É triste porque isso poderia ter sido ótimo com um produtor mais competente, mas Kurzmann faz o que faz de melhor e está arruinando um show com potencial com política de identidade desnecessária, além de uma escrita ruim… pare de dar a essas pessoas mais shows para arruinar e consiga alguém que saiba o que estão fazendo … ninguém se importa que o elenco principal seja negro, acho que eles estão fazendo um ótimo trabalho com o que lhes é dado para trabalhar, mas quando todas as pessoas brancas são apenas escritas como os idiotas mais desagradáveis e as mulheres são retratos tão comuns quanto os melhores de todos os tempos de uma maneira tão descaradamente preguiçosa, isso simplesmente me tira de um show. #Kundakunde
Neste programa, é claro que todos os homens brancos são pessoas más sem motivo. E todos os personagens principais são negros. Até os alienígenas! #Daniel GG
O tipo de crítica que tem acompanhado realizadores negros como Jordan Peele, Nia da Costa e agora Jenny Lummet. E que me motivam a fazer crítica de cinema, abusada que sou. Talvez não tenham entendido ou aceitado que tudo nessa série é sim sobre raça, como disse Kurzmann. E os alienígenas deste e de outros planetas somos nós.
Merda, vou fazer isso. Mulher negra.
Vemos a pena de Lumet na narrativa da brilhante cientista que se refugia para cuidar de seu pai doente e de uma filha pequena. E que precisa decidir se vai ajudar ou não na tarefa de salvar não apenas um mas dois planetas. Quando descobrimos que Justin Falls é a única na terra com conhecimento suficiente para salvar o rolê todo, a gente se animou e bastante.
Quando ela decide ajudar aquele homem negro que esta para ser morto por homens brancos e diz “Merda, vou fazer isso. Mulher negra.” toca em um ponto muito sensível do cotidiano de muitas mulheres negras que se perguntam se estamos dispostas a sempre fazer o trabalho que outros não conseguem ou não querem fazer. Nem mesmo por si mesmos.
Quando Faraday afirma para Falls que a missão dele é a missão dela, vemos dois corpos negros combinando de salvar milhões de vidas num seriado de televisão que aparentemente é apenas sobre um alienígena que caiu na terra. Mas é muito mais do que isso.
O estereótipo de mãe preta (de dois mundos) não se aplica aqui. Falls parece muito mais preocupada com os seus e com a possibilidade de fazer algo que ama – ciência. Faraday por sua vez quer salvar sua espécie, que até onde sabemos seria identificada como negra na terra, com possíveis graves consequências. Como acontece com ele mesmo.
O que me faz pensar na personagem de Sonya Cassidy, Eddie Flood, uma mulher aristocrática, arrogante e solitária no mundo da tecnologia cuja fortuna é fruto de roubo. Quando ela diz numa mesa de negociação que os presentes precisam escolher entre ela e Falls, sabemos do que se trata. Mesmo diante da possibilidade dessa mulher negra lhe render um lucro exorbitante, temos um ponto de atenção sobre a importância das narrativas de identidade na indústria e para além dela.
Sim, estamos falando de política.
Mesmo que um bando de gente não consiga enxergar isso. O que está em disputa em O homem que caiu na terra e também em séries da franquia Star Trek é qual narrativa de futuro é possível. E se nós estaremos lá para vivê-lo e como. Interessante notar como alguns consideram isso desnecessário.