Nas últimas semanas o debate nas redes sociais girou bastante em volta da forma com que a deputada Tabata Amaral(PDT-SP) questionou o ex- ministro da educação Ricardo Veléz. Muitos foram os comentários a respeito da forma com que a deputada foi capaz de demonstrar a inércia do MEC, a maioria deles , entretanto, é focado no fato de que Tábata manteve um tom de voz baixo, considerado sereno e controlado, apresentando uma diferença na forma com que a deputada interpelou seu opositor em relação a outras figuras políticas que são mais contundentes. O conteúdo da fala de Tabata foi menos comentado do que a forma com que Tabata se apresentou. E isso por si só já é suficiente para discutirmos os impactos das imagens de controle na presença pública de mulheres.
O conceito de imagens de controle é organizado por Patricia Hill Collins de forma aprofundada na obra Black Feminist Thought, um dos principais estudos sobre o pensamento feminista negro já escritos. Eu defendo que este é um dos argumentos centrais da obra da autora, mas para os fins deste texto, basta sabermos de forma sintética o que são imagens de controle.
As imagens de controle são definidas por Patricia Hill Collins como uma representação específica de gênero para pessoas negras que se articula a partir de padrões estabelecidos no interior da cultura ocidental branca eurocêntrica. As imagens de controle se diferenciam das noções de representação e estereótipo a partir da forma com que a mesmas são manipuladas dentro dos sistemas de poder articulados por raça, classe, gênero e sexualidade. Patricia Hill Collins explica como que as imagens de controle são articuladas a partir de alguns exemplos específicos, mas são inúmeras as possibilidades de articulação de imagens de controle que apresentam-se enquanto a dimensão ideológica do racismo e do sexismo e que são historicamente manipuladas como uma forma de controlar o comportamento e os corpos de mulheres negras, obstaculizando os processos de subjetivação dessas mulheres, sua autonomia e também o exercício da cidadania.
A dinâmica das imagens de controle não é fixa , assim como os pressupostos de uma feminilidade ideal, os quais são influenciadas por combinações de raça, gênero, etnia, classe e status de cidadania. Assim, os pressupostos que organizam o ideal de feminilidade no Brasil não serão os mesmos que organizam o padrão de feminilidade na China, por exemplo. Ou seja, essas categorias não são fixas mas são a partir das mesmas que imagens de controle são organizadas.
Na obra Black Feminist Thought, Patricia Hill Collins analisa centralmente quatro imagens de controle, a mula, a jezebel, a mammy e a black lady. A mula é mulher que trabalha como um animal , compulsoriamente e sem reclamar. A jezebel é uma mulher hipersexualizada lida enquanto uma máquina sexual, a mammy é a empregada doméstica leal aos seus empregadores que dedica sua vida ao emprego e a fornecer cuidado e conforto para os brancos, a black lady é a mulher negra que abandona a perspectiva de construção de uma família negra em prol de uma carreira em altos cargos. As imagens de controle não são meros estereótipos, são antes de mais nada uma forma de articular roteiros sociais a partir dos quais a sociedade irá visualizar e tratar mulheres negras. Sobretudo, são scripts de como mulheres negras devem se portar.
No contexto brasileiro existem também imagens de controle históricas que se organizam a partir de estereótipos que tem por objetivo desumanizar e coisificar mulheres negras, como é o caso do estereótipo da mulata. Da mesma forma, a mulher branca, heteresossexual é considerado um tipo ideal de mulher e, consequentemente, será considerada um tipo ideal de representação feminina na política. Patricia Hill Collins adverte que este ideal é um construção a partir de pressupostos hegemônicos e quanto mais próximas estamos desse tipo ideal, mais favoravelmente seremos julgadas.
É dessa forma que a imagem de controle da lacradora irá interpelar a vivência de mulheres negras na esfera pública. O lacre, que pode ser considerado enquanto uma ferramenta de comunicação organizada especialmente por mulheres negras e pela linguagem LGBT, constituiu-se enquanto uma forma de auto-valorização de grupos de mulheres negras nas redes nos últimos anos. Entre essas mulheres era bastante comum a utilização da ideia do lacre enquanto um elogio que visava demonstrar como o argumento apresentado por uma mulher negra eludia uma questão relativa a vivência dessas mulheres. Especialmente em comentários nas redes sociais, atribuir a fala de uma mulher negra a “um lacre”, era uma forma de auto-valorização do conteúdo organizado intelectualmente por essas mulheres.
Contudo, não demorou muito para “o lacre” passar a ser razão de escárnio, deboche e desvalorização. A lacradora deixou de ser uma mulher negra que mobiliza argumentos intelectuais com propriedade para ser sinônimo de alguém que é agressivo, arrogante, vaidoso e pouco preocupado com o diálogo. Ou seja, a branquitude se encarregou de criar uma outra narrativa e significado para algo que estava diretamente relacionado com o processo de auto-definição de mulheres negras.: a auto-valoração e o reconhecimento de potencialidades entre as próprias mulheres negras como um espaço seguro.
Mulheres negras que ocupam cargos na esfera pública constantemente são submetidas à imagens de controle, mas também mulheres brancas o são. A diferença é a forma com que essas imagens irão afetar o exercício da política para cada grupo, e é exatamente aí que o ocorrido com Tabata nos interessa, porque os sistemas de dominação de raça e gênero se interpelam de forma tão poderosa que são capazes de produzir controles simultâneos para mulheres brancas e negras a partir de um mesmo pressuposto hegemônico de feminilidade.
Tabata foi extremamente elogiada por manter um tom de voz baixo, considerado controlado e sensato. Mulheres negras que ocupam a esfera pública são constantemente interpeladas por serem lidas como agressivas, por falarem de forma alta, por manifestarem-se publicamente a partir de uma fala contundente. Ao atribuir
agressividade às mulheres negras que ocupam espaços onde existe uma possibilidade de articular reinvindicações dessas mulheres de forma conjunta, opera-se uma forma de secundarizar essas reivindicações. A forma com que o discurso dominante a respeito de como mulheres devem exercer suas atribuições na esfera pública, não é controlado por mulheres negras. Ele é articulado a partir de percepções da branquitude que estruturam uma lógica de poder onde mulheres negras são vistas como invasoras da esfera pública, porque esta é masculina e branca. Contudo, apesar de não sermos detentoras do poder de definir os discursos dominantes, somos influenciadas por ele.
Embora os movimentos de mulheres estejam a todo momento repudiando estereótipos que controlam o corpo e comportamento de mulheres, foram poucas as análises que atentaram para o conteúdo sexista e racista que estava imbricado nas noticias e comentários a respeito da ponderação, da calma e da tranquilidade com que Tabata interpelou o ministro. Ao focalizar mais na maneira com que Tabata se portou e menos no conteúdo de seu discurso, ficou evidente a forma com que mulheres brancas tendem a absorver esses estereótipos porque ao fazê-lo ficam mais próximas da possibilidade de acessarem o local de poder que articula o discurso hegemônico. Tábata corresponde a um tipo ideal de feminilidade: branca, de baixo tom de voz, jovem. É muito diferente das lacradoras, agressivas, gritalhonas que ousam ocupar o espaço político a partir da agenda pública de mulheres negras. Aliás, na semana seguinte viralizou um vídeo de Talíria questionando Paulo Guedes, uma parte bastante significativa dos comentários apontavam uma preferência a Tabata. “´Prefiro a Tabata, a Talíria fala gritando.””Menos Show e mais conteúdo deputada”, “aconselho a se preparar melhor e falar mais baixo, como a Tabata”
Ao não perceber a relação que a representação de Tabata enquanto uma mulher calma, ponderada, não agressiva e , especialmente , despida da linguagem do lacre, tem com a forma com que os sistemas de dominação organizam uma feminilidade hegemônica mantêm-se uma ideia de quem pode e quem não pode entrar na esfera pública. E quem não pode são as mulheres negras, porque agressivas, porque arrogantes, porque debochadas, porque lacradoras. Ainda que deputadas democraticamente eleitas e no exercício da sua função, serão interrompidas. Seja dentro da institucionalidade, a partir de imagens de controle, seja fora da institucionalidade a partir de violências estruturais ainda mais severas também articuladas em uma matriz de dominação que opera para controlar o poder e suas dinâmicas que permanecem a serviço de uma mesma estrutura que historicamente silencia, oculta e suprime as vozes de mulheres negras.
Para mulheres negras a rearticulação é uma necessidade constante. Há todo momento precisamos rearticular sentidos e significados de questões que fazem parte da nossa própria experiência. A lógica hegemônica desvaloriza e trata com desimportância o argumento de mulheres negras independentemente de como elas se portam. Mulheres negras que usam um tom de voz baixo não serão ouvidas porque são interpeladas como submissas e passivas. Mulheres negas que usam um tom de voz alto não serão ouvidas porque são interpeladas enquanto agressivas e violentas. Mulheres negras que utilizam o deboche como ferramenta política não serão consideradas como
representantes das mulheres porque são arrogantes. Mulheres negras que utilizam a sensibilidade e o amor como ferramenta política não serão consideradas porque não são radicais o suficiente, não são de esquerda o suficiente, em suma, não são suficiente.
No fim do dia, a dominação sistêmica articulada a partir de gênero e raça sempre colocará mulheres negras como insuficientes. A lacradora, que muitas vezes só é ouvida exatamente pelo incomôdo que provoca com seu deboche, suas alfinetadas e ironias é mais uma mulher negra buscando garantir a sua agência individual e coletivamente. O problema da esquerda não é o lacre, o problema da esquerda é a falta de reconhecimento dos privilégios políticos de quem sempre teve privilégio político, seja porque branca, seja porque herdeira política, seja porque ocupou a institucionalidade não a partir do lacre, mas do acesso aos melhores empregos, as oportunidades acadêmicas mais promissoras . O problema da esquerda é não compreender nem ao menos que a presença de mulheres negras na esfera pública não é sinônimo de emancipação dessas mulheres, mas apenas um pequeno passo em uma agenda política muito mais profunda, que demanda articulações que desde o processo da escravização são pensadas para que possamos sobreviver a situações de extrema hostilidade. A extrema hostilidade com que somos tratadas na esfera pública demanda muito mais do que a linguagem do lacre, mas ela tem se mostrado um artifício importante quando precisamos ser ouvidas.