13 de maio: vamos falar sobre exploração doméstica?

Então falemos de exploração de empregada doméstica, mas antes destaco um caso que ocorreu no início do mês de maio: um jornal do Pará gerou muita polêmica, com razão, ao publicar um anúncio, no qual um casal de empresários pretendiam “adotar” uma adolescente de 12 a 18 anos para cuidar de sua bebê de 1 ano. O anúncio recortado dizia: “casal evangélico precisa adotar uma menina de 12 a 18 anos que resida, para cuidar de uma bebê de um ano que possa morar e estudar, ele empresário e ela também.” O procurador do casal, responsável em publicar o anúncio, disse à polícia que o fez com consciência e autorização do casal, mas que a atendente dos classificados foi quem errou.

Eu não sei que tipo de instrução a atendente ou o procurador tem, mas esse anúncio tem uma escrita que não obedece à norma prestigiada da língua, indo de encontro ao que se espera, normalmente, de quem trabalha em um jornal. Então a impressão que se tem, é que do mesmo jeito que a mensagem chegou, ela foi transcrita no jornal, coisa comum em classificados, onde o responsável pelo anúncio é quem escreve a informação. Obviamente eu não estou aqui criticando a escrita que fugiu da norma prestigiada, mas sim concluindo que, talvez, por conta disso a informação esteja de acordo com o desejo dos “empregadores” e não com a confusão da atendente do jornal, pessoa que normalmente é contratada por saber escrever dentro da norma adotada pelos jornais, veículo de informação formal. O casal, em outra ocasião, afirmou que a idade pedida no anúncio estava errada, mas então por que nesse mesmo anúncio pedia que a adolescente comparecesse com a presença dos pais? Desde quando, em entrevista de emprego, é necessário levarmos nossos pais? Muito mal explicado, como tudo nessa história.

Depois de situar vocês sobre o que realmente quero falar, vamos ao cerne da questão. Eu tive duas irmãs e inúmeras primas nessa situação de exploração do trabalho, pois elas começaram a trabalhar como empregadas domésticas antes de completar 15 anos de idade, vivam nessas casas, “até” podiam estudar, desde que fosse no período da noite, mas tinha que ter um comportamento social exemplar (recordemos o decreto 7031/1878 que foi posto em vigor uma década antes da assinatura da Lei Áurea. Neste decreto era estabelecido que os negros só poderiam estudar no horário noturno para não coincidir com o horário de trabalho). Interessante perceber que essas meninas acordavam às 6h da manhã, faziam o café, colocavam a mesa e só podiam se alimentar depois que todos comessem. Limpavam, lavavam, cuidavam das crianças, faziam o almoço, colocavam a mesa e, de novo, só podiam almoçar depois dos patrões, na cozinha, lá pelas 15h. Antes de sair para a escola, onde sempre chegavam atrasadas, tinham que colocar a mesa do jantar e na volta dormiam mais das 23h, pois tinham que deixar a pia impecável antes de dormir. Suas vidas funcionavam em torno das necessidades dos patrões. Às vezes, quando não tinham aula, podiam assistir novelas na sala com a patroa. Mas não podiam conversar ou emitir opinião sobre nada. As mesmas Chicas da Silva que apareciam naquela tela de televisão, eram as mesmas sentadas no cantinho ou no braço do sofá. Essas imagens serviam para elas e para as patroas não esquecerem quem elas eram e quais eram seus destinos. Essas meninas não podiam passear, namorar ou sair para as festas, coisas que as filhas da patroa podiam fazer. Elas eram refém com um pouco mais de direitos que as escravizadas antes do 13 de maio de 1888.

Qualquer conduta que pudesse tirar as meninas empregadas da ordem natural de servir, medidas eram tomadas, como ameaça-las ou chantageá-las de contar aos seus pais, normalmente moradores da zona rural, que elas estavam transgredindo a moral e os bons costumes. Que seus pais a enviavam para estudar e “contribuir” nos afazeres domésticos, mas na verdade o que elas faziam mesmo era se dar ao desfrute. Isso era inadmissível. Uma declaração dessas de uma mulher branca, empoderada e representante de uma sociedade tradicional mataria a reputação de uma menina. Na pior das hipóteses essas meninas podiam ser devolvidas, perdendo a única oportunidade de se escolarizar e de quem sabe um dia poder fazer outra coisa na vida, pois a vida no campo também era muito difícil. Como uma irmã minha fez depois de anos, e a outra continua nessa condição de trabalho doméstico, agora um pouco melhor valorizado e melhor remunerado.

Seguindo com outras histórias que presenciei por ter morado no interior, a 12 horas da capital baiana, essa prática de “adoção” era muito comum e ainda o é, mas com o advento de iniciativas como Bolsa Família, os exploradores, ops os “empregadores”, reclamam que por causa desse programa federal não acham mais nenhuma menina que queira ganhar R$ 150,00 para limpar suas privadas. Estão todas “mamando” nas tetas do governo e se tornando pessoas preguiçosas. Mas o que vejo são muitas  dessas meninas dentro da universidade dividindo o espaço com as filhas da patroa. O discurso incomodado e a revolta são claros, literal e metaforicamente. Eu nem sei como foi que eu não entrei nessa onda de ser empregada doméstica, pois tinha todo perfil: pobre, negra e irmã e prima de outras empregadas domésticas. Qual era mesmo o meu destino? Fugi dele e fazia questão de dizer para as “madames” que vinham conversar com minha mãe, na minha frente, que estavam atrás de uma “babá” para seus filhinhos: não limpo bosta de ninguém. Era rebelde, “mal educada”. Nunca aceitei. Queria estudar. E o fato de minhas irmãs terem tomado a rebombada social, de certa forma fez com que eu tivesse um pouco mais de chance de pelos menos sonhar e ser outra coisa, que não perpasse pela exploração, já que o fato de ter nascido pobre, negra e mulher não me daria outra escolha. Deu certo. Não que eu ache que o trabalho doméstico deva ser desvalorizado, muito pelo contrário, pois tenho exemplos de mulheres fortes, que através dele, aguentaram tudo que puderam para que ninguém passasse ou morresse de fome numa família de 8 integrantes. Mas que ele não seja a única perspectiva de mulheres negras e pobres. Que elas possam ser o que elas queiram ser.

 

Imagem destacada: Black beautiful Fanpage

11 comments
  1. Josane Silva Souza, parabéns pelo texto, parabéns pelo grito de liberdade que você dar à todas as domésticas que não podem se pronunciar, pois, estão silenciadas por um sistema opressor que as segregam e lhes tiram o que lhes é de direto- As identidades!! Elas nos são arrancadas no intimo de nossas almas…. Foi um prazer e uma satisfação muito boa em conhecê-la.

  2. Adorei o texto, perfeito em tudo. Minha família passou por tal. Avó “governanta”, e ao ter minha mãe, com o marido motorista, seus patrões, padrinhos da criança, queriam o mesmo pra ela. Só que minha mãe estudou e muito, foi sim doméstica por um período, mas para custear sua faculdade e hj é aposentada do extinto Inamps, hoje Inss. Estudo e valorização acima de tudo sempre.

  3. Não tenho mais nada a dizer. Você já disse tudo.
    Acredito e espero de coração que um dia alguém possa dizer: “Acredita que naquela época a única opção no mercado para as mulheres negras era o trabalho doméstico? Absurdo!”
    Até lá, a gente ainda tem muita coisa pra martelar na cabeça das pessoas. Parabéns por ser mais uma pecinha nessa grande mudança. =)

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