Mulata, mulata, mulata – disse para si mesma diante do espelho.
Mulata, mulata, mulata – repetiu e não tinha mais a certeza da palavra que sempre a silenciou.
Mulata, mula… Será? Era o que ela queria ser?
A vida toda sem falar alto, sem gestos bruscos, sem gargalhar, aprendendo a se comportar, estudando, trabalhando, duas vezes mais pra ser melhor.
Mas você é diferente, diziam. Aliviada ficava por alguns dias, mas tinha que repetir o exercício, falar para si mesma: MULATA!
Mulata
base mais clara no rosto e no pescoço
dieta para diminuir os quadris
rir segurando os lábios
juntar dinheiro para intervenções no nariz
não deixar a raiz do cabelo aparecer.
MULATA PORRA!
Prisão!
Vendo Outras descobriu a semelhança, as possibilidades.
Com medo, foi deixando de dizer-se mulata. Quase vestiu o termo morena mas vendo outras mulheres tão semelhantes a ela e repletas de orgulho por suas negruras resolveu não recuar. NEGRA, NEGRAS! As palavras não a silenciavam mais.
Negra, disse pra si mesma diante do espelho. Livre estava se tornando. Sua mãe até lhe disse um dia:
É impressão minha ou você tá mais preta?
Preta, nos passos, nos traços, na sensível sensibilidade como diria Geni Mariano Guimarães.
Caminhou para si mesma. Fez esse trajeto que não tem volta: de se olhar, reconhecer, respirar fundo e aprender que o amor, essa colcha de retalhos da vida, era um presente dado por ela a Preta que sempre foi e agora se descobria.
NEGRA, NEGRA, NEGRA. Se habitou a força da palavra que a erguia, das asas que construía, um caminho para si.
Referências
Integridade
Geni Mariano Guimarães
Ser negra,
Na integridade
Calma e morna dos dias.
Ser negra,
De carapinhas,
De dorso brilhante,
De pés soltos nos caminhos.
Ser negra,
De negras mãos,
De negras mamas,
De negra alma.
Ser negra,
Nos traços,
Nos passos,
Na sensibilidade negra.
Ser negra,
Do verso e reverso,
Do choro e riso,
De verdades e mentiras,
Como todos os seres que habitam a terra.
Negra
Puro afro sangue negro,
Saindo aos jorros
Por todos os poros.
Imagem de destaque – “O Canto” – Episódio #2 – Xênia França