Desde que tenho consciência de que este é um mês onde todos os holofotes estão virados pra nós, tomo cuidado – desde que aprendi certas gingas – ao falar, agir; onde estar, o que ocupar, quando calar.
Até aqui, aprendi muita coisa ouvindo as mais velhas, as companheiras de luta, as músicas e leituras. E porque ontem foi 20 de novembro, conversei com muita gente que amo, ouvi algumas coisas maravilhosas e outras nem tanto. Guardei tudo!
Mas porque guardaria se o que me angustia pode também te angustiar agora, não é mesmo? Vim escrever pra não morrer e dizer o quão estamos tão juntas, tanto que nem imaginamos. O racismo nos afeta, mas o desejo de liberdade nos une. Tenho uma pequena estória pra lhe contar:
Enquanto refletia sobre o significado de ontem e me lembrava dos anos anteriores em que nesse dia dedicado à Consciência Negra, estávamos todas militando, em rodas de diálogo ou trabalhos outros, esse ano constatei que a maioria de nós decidiu parar. Refletir, pensar, cuidar de si – não sem olhar para as outras e outros. Ontem, enquanto comia tapioca com café, vi também que algumas de nós estavam em rodas de jongo, batalhas de hip hop, shows e celebrações, marchas. Mas o que não deixei de sentir foi os 7 de nós que sangraram. Ouvi mais um grito desesperado de mãe que perde seu filho executado e pede pelo amor de qualquer deus ou mortal que a deixem buscar aquele corpo que é sangue dela. Ouvi um pai dizer “foram executados. tiro nas costas” e vi esse mesmo pai deitar no chão revivendo a cena. Mais uma vez, no dia em que todos nós devíamos celebrar, alguns choravam. Chorei também, mas não quero paralisar.
A grande amiga passeava no shopping, em busca de algum funcionário preto nas grandes lojas de marcas ricas, porque claro, lá vem black friday. E falávamos de amor enquanto as fotos de roupas caras, colares de pérola e cristais subiam reluzentemente pelo whatsapp. O desejo de ter, a vontade de comprar e a dignidade do ser que o racismo nos tira – não se pode nem ter nem desejar – tomaram conta da prosa. Rimos da tendência das camisas listradas e juntas lamentamos o quão mutilador é passar a vida desejando coisas sem pensar muito de onde viemos, quem somos. Comentamos sobre Makota Valdina e seus ensinamentos sobre ser e a conversa do genocídio voltou; é preciso reconhecer que há vitória em estar viva, em poder ter acesso a assistência psicológica e ter um celular – porque o racismo tenta todos os dias nos tirar TUDO!
Desde o direito de sonhar até a nossa própria vida. Tira nossa saúde [mental e física], tira nosso desejo de acordar no outro dia, tira nossa vontade de acreditar em nós mesmas, nosso emprego, nossos amores. Chega, né não?
Um dia depois do 20 de novembro é um dia de basta. É um dia em que eu não quero mais ouvir que a única preta do curso de física desistiu; não quero saber que morreram mais 5, mais 7 pretos; cansei de saber que mais uma mulher negra foi agredida numa ocupação justamente NO DIA da discussão sobre mulheres negras & ocupações; é um dia em que não deveríamos ouvir que as companheiras estão mal, sofreram racismo numa assembléia deliberativa de uma faculdade agora desocupada ou que sua amiga está louca por apontar racismo em gente branca.
Continuamos falando do nosso desejo de liberdade e dos planos para 2017. Da saudade do abraço e de quais lugares queremos ir juntas naquele abraço. A ansiedade ainda não passou e a solidão da casa é fresca como o ventinho que bate vindo do jardim. Onde está quem o racismo também levou a coragem de amar? Cadê quem se sente tão forte – porque assim o racismo disse que é – que o tornou fraco, incapaz de ficar perto da outra que ama? Minha grande amiga acolhe de longe e me faz acreditar que dias melhores podem chegar, com choro e lamento, mas sem nos deixar paralisadas. Escrevemos pra não morrer.
As perdas, as mortes, as dores não serão as grandes pedras na nossa frente. Ontem, fiquei em casa, mas também estava em cada coco de umbigada, Dona Beth de Oxum! Nos passos das milhares de Isabellas na Marcha na Paulista e em cada rima dos meninos na final nacional das Batalhas em BH. Sentada, enquanto escrevia ouvindo “Slave driver, the table is turining” e chorando de felicidade, lembrando de Makedda, Alyne Nunes e Nathália Diórgenes, mulheres negras que quando abraçam, tocam a alma. Que quando falam, trazem carinho nas palavras. Fiquem em casa, mas estava com Lu – no sorriso dela e naquela voz grave que puxa um samba de macumba como ninguém. Obrigada Lu! O Racismo não nos parou.
Como esquecer daquelas que não param nunca e estão do nosso lado nos momentos mais difíceis e que mesmo cheias de tretas do dia-a-dia, nos oferecem aquela pitada de alegria, aquela música ou comentário sobre seriado preferido. A fortaleza do estar juntas, a felicidade da troca que só as boas e amadas compas nos trazem. O dia depois do dia 20 também é um dia de saudade.
Esse é o mês que nos convidam para os lugares onde não costumamos estar nos outros dias. Nós iremos, se assim quisermos. Não sem antes falar o que pensamos, sem escrever como nos sentimos, nem muito menos sem dizer que somos porque alguém foi antes: Beatriz do Nascimento, Lélia Gonzáles, D. Ruth de Souza, Yá Gildásia dos Santos, D. Carmelita Paula da Cruz.
A memória não vai ser apagada. Não vão nos parar. Não vão nos tirar mais um dia. O racismo não vai nos tirar mais nada.
Imagem destacada: Afropunk