Em A caminho de casa, romance de estreia da escritora ganense Yaa Gyasi, a personagem Akosua exprime a potência que as narrativas na primeira pessoa assumem em processos de cura e libertação de Mulheres Negras na África e na diáspora. Ao afirmar “vou ser minha própria nação”, a jovem Axânti convida-nos ao uso da criatividade para soltura dos grilhões que prendem nossos corpos e mentes. Como acadêmica negra, aprendo e ensino que se desvencilhar é uma arte que exige de Nós aprimorar movimentos importantes. O auto reconhecer-se Autoras e Sujeitas de histórias que precisam ser contadas. O engajamento e o desprendimento para transformar ascensões individuais em conquistas coletivas. O compromisso de fazer com que lutas que protagonizamos no passado e no presente incidam no futuro. O direito de sermos humanas, sorrindo e celebrando nossas vitórias.
É a partir desses movimentos que unem corpo, mente e alma que nasce Intelectuais Negras Visíveis, catálogo que tenho a honra de assinar como organizadora. Editado em formato e-book e com projeto gráfico-editorial assinado pela designer Maria Julia Ferreira, a obra, que representa muito para a história do Brasil em termos de registro e mapeamento de dados sobre a inserção de Intelectuais Negras no mercado de trabalho, será publicada em parceria com a Editora Malê, estando disponível para download gratuito no site do Grupo Intelectuais Negras (que será lançado em julho).
Na linha de transgredir – valorizando as potências e visibilizando as conquistas – a publicação constitui-se em esforço editorial pioneiro ao congregar um primeiro balanço de cento e vinte profissionais, que por meio de fotografias e informações biográficas, mostram-nos a diversidade, a qualidade e a potência dos múltiplos fazeres que desempenham nas cinco regiões do país.
Partindo da máximo do Grupo – “Muitas, fortes e visíveis”, da valorização das escritas de si, do ativismo virtual, da horizontalidade entre saberes acadêmicos, escolares e ativistas e dos limites de tempo e espaço que a publicação de uma obra pressupõe, coube à equipe de pesquisa, coordenada por mim e formada pelas Intelectuais Negras Amanda Sanches, Conceição Seixas, Janete Ribeiro e Núbia de Oliveira, selecionar de dez a vinte profissionais nos seguintes campos de atuação: Academia e Pesquisa, Afroempreendedorismo, Artes Visuais, Cinema, Dança, Teatro e TV, Coletivos de Mulheres Negras, Comunicação e Mídias, Direitos Humanos, Educação Básica, Intelectualidade Pública, Literatura, Música, Saúde. Tanto para definição dos nomes quanto dos campos, levamos em conta critérios como diversidade etária, regional, de classe, de gêneros e sexualidades e as transformações das últimas décadas.
Frente às conquistas e mudanças das últimas décadas e diante do atual momento de retrocessos das políticas públicas de combate ao racismo e ao machismo, a obra também fala da capacidade de nos reinventarmos e valorizarmos as potências que carregamos. Isso é lindamente ilustrado pela presença da filósofa Djamila Ribeiro, da jornalista Flavia Oliveira, da dentista Marcia Alves e do ator Lázaro Ramos como apoiadores do projeto. A cada uma, um de vocês Modupé por colocarem em prática um sentido de comunidade negra que valoriza a aposta na coletividade!
Uma obra tem muitos significados, por isso Visíveis também é concebida como política de desensinamento dos lugares esperados para Mulheres Negras no país. A diversidade de profissionais que integram os nichos de trabalho pesquisados confirma a assertiva. Nas Artes Visuais, abrilhantam o catalogo Intelectuais Negras como a produtora e fotógrafa Rosa Luz, em Brasília. A artista plástica Valquíria Pires, autora do projeto Xilopretura no Rio de Janeiro. A baiana de Alagoinhas Fernanda Júlia Onisajé, diretora teatral da peça Tragam-me a cabeça de Lima Barreto, premiada pelo Edital Myriam Muniz Funarte 2015. A afroempreendedora porto-alegrense Izis Abreu, autora do blog Arte e Cultura Negra. Na Comunicação, isso ocorre com a presença de Maria Rita Casa Grande, blogueira e full stack developer e de Silvia Nascimento do Portal Mundo Negro. No campo artístico, por meio das participações da atriz, pesquisadora e poeta Suely Bispo, do Sarau Afro-Tons no Espírito Santo, da multiartista maranhense Glauce Pimenta Rosa e da bailarina e professora de dança-afro Aline Valentim no Rio de Janeiro.
É possível afirmar que o reconhecimento da humanidade das Mulheres Negras permanece como principal pauta do feminismo negro em suas diversas vertentes. Assim, vale mencionar a atuação de mulheres como Ilka Teodoro, advogada e Diretora Jurídica da ONG Artemis Aceleradora Social, em Brasília. Da professora Maria Isabel de Assis, especialista em políticas públicas de gênero e raça, em São Paulo. Do mesmo modo, ressaltar as relevantes contribuições da intelectual pública Elizabeth Viana, socióloga e fundadora do N’Zinga, primeira organização de mulheres negras do estado do Rio de Janeiro e de Lucia Cabral, assistente social da ONG carioca Educap, no Complexo de Favelas do Alemão. Os trabalhos que desenvolvem dizem respeito ao compromisso de lutar pelo respeito às pessoas Negras nos Direitos Humanos.
Na Literatura, área que impulsiona relevantes debates sobre nosso protagonismo na cultura escrita e no mercado editorial, ressaltamos o trabalho com cordéis da autora maranhense Jarid Arraes e a beleza e originalidade do projeto Onde Jazz Meu Coração, de Ryane Leão nas ruas paulistanas. No Sul, sublinhamos a inventividade da gaúcha Maria do Carmo Santos, autora de livros de poesia como Coisa de Negro e da carioca Elaine Marcelina, literata que assina a terceira edição do necessário livro Mulheres Incríveis. Na Música, celebramos a pianista Marisa Gurgel, que nos ensina sobre a arte de musicar com nossas próprias mãos e a cantora baiana Nara Couto, com letras lindas e pretas que chamamos de nossas. Já na Educação Básica, celebramos Ana Lucia Mathias, no Paraná, e Odailta Alves, no Recife, pois ambas simbolizam o protagonismo de um campo composto por milhões de Mulheres Negras comprometidas com o educar crianças, adolescentes e adultos para prática da liberdade.
Com tantas Intelectuais Negras Visíveis, é tempo de evidenciar os problemas e limites da meritocracia e do excepcionalismo como únicas chaves para interpretar as histórias que escrevemos. Uma das principais formas de nos mantermos visíveis caminha em sentido oposto: o de sempre lembrar que ascensões individuais se forjam através de projetos coletivos de educação e liberdade desde antes da travessia do Atlântico. Nossa tradição de cooperar e empreender faz parte das muitas histórias e vidas que nossos corpos carregam, portanto precisam estar no centro das narrativas que produzimos e dos espaços que ocupamos.
Podemos sorrir. Em letras Lindas e Pretas, formamos uma Nação!
#intelectuaisnegrasvisíveis