Atualmente um fator que organiza o nosso cotidiano é o binômio saúde-doença, que acaba sendo como uma apêndice da nossa identidade, por conta da forma que aprendemos a lidar com isso. A saúde hoje, se debruça num movimento de medicalização e prescrição compulsória, onde os fatores sócio-históricos e culturais são colocados a parte da análise ( que deveria ser integral) do nossa caminhada do cuidado em saúde.
Uma das questões que me faz refletir sobre que tipo de saúde temos hoje no Brasil é o racismo institucional, que muito bem instalado nos serviços de saúde como todo, ataca a população negra, criando obstáculos no acesso, integralidade e equidade nos atendimentos e oferta de serviços.
Primeiramente, é interessante pensar porque organizarmos profissionais de saúde negras no combate ao racismo e a misoginia. A Psicóloga é a profissional de saúde mental que atua na promoção e prevenção de saúde na assistência psicológica, na esfera técnica e científica da análise de comportamento e subjetividade. A Psiquiatra é a médica especialista em saúde mental que atua na esfera biológica/medicamentosa de tratamento, trabalha com diagnóstico, tratamento e reabilitação de transtornos de cunho orgânico ou funcional de sofrimento psíquico.
A população negra no Brasil sofre problemas psicossociais individualmente e coletivamente por conta da forma que a sua identidade foi construída, em berço escravocrata e com seu pertencimento de diáspora em África, negada por paradigmas como a democracia racial, meritocracia e outras falácias. Pensar no processo de emancipação da comunidade negra e em seu trajeto de saúde é referendar às violências institucionais às responsabilidades de dificuldade de acesso aos direitos garantidos e combatê-la através dos dispositivos, dos recursos humanos e do controle social.
Pensando no quesito autonomia e contextualizando com a história da construção do cuidado em saúde mental no Brasil, existe um movimento histórico de silenciamento e destituição de poder, das pessoas que portam algum transtorno mental. Durante mais de duzentos anos, a prática manicomial foi instituída como a única possibilidade de cuidado em saúde mental, construindo um perfil de relação entre o usuário e a sociedade cujos princípios são a segregação, exclusão, periculosidade, negação de direitos e silenciamento total de qualquer tipo de autonomia sobre seu corpo, rompendo com trajetórias de vida e desejos.
O termo psicofobia, muito utilizado pela categoria médica psiquiátrica, é um neologismo que se caracteriza pelo “o preconceito contra os padecentes de transtornos e deficiências mentais”, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria. Termo esse, que se tornou o Projeto de Lei nº 74/2014 que prevê uma alteração no Código Penal, quando se remete a crimes direcionados a pessoas com transtorno mental. Como o que é pensado como saúde historicamente está nas mãos do modelo que é centrado no cuidado médico, essa resolução tem um problema grande diálogo com os modelos de atenção em saúde propostos em confronto a lógica manicomial, ou seja, a intencionalidade parece ser bacana, porém contextualizando com as violações que ocorrem no modelo manicomial, o projeto de lei reafirma opiniões políticas de estigmatização do uso e de combate às drogas, colaborando diretamente com o discurso e legitimação da guerra às drogas e concomitante ao genocídio da população negra.
A história é longa e nós, comunidade negra, somos as mais atingidas nesse sistema de opressões. Se sem o rótulo da patologização já temos acessos barrados ao mercado de trabalho, mobilidade social, educação qualificada, imaginem quando estamos em cárcere, mas em um cárcere onde o delito é o adoecimento. E sem sombra de dúvidas, a maioria dos usuários em saúde mental que estão em hospitais psiquiátricos são negros e isso não é coincidência. Durante anos, a categoria psiquiátrica produz cientificamente uma ideia onde afirmam que a loucura não tem cor, anulando o quesito raça/cor da discussão, porém sempre fomos considerados como intelectualmente inferiores e, por isto, menos capazes de enfrentar e/ou adaptar-se às contingências do meio social, sendo assim ‘mais propensos’ à “degeneração”.
Então não é muito difícil visualizar que estamos em processos ininterruptos de preconceito, abandono e apartamento social e pensando da forma que o racismo nos adoece em diversas áreas, o adoecimento psíquico se apresenta como uma constante tanto nos processos de branqueamento, como nos de enfrentamento ao racismo. Quando conugamos a questão de gênero isso se potencializa, visto que os índices de violência sexual são altíssimos e os órgãos de controle, fiscalização e divulgação dessas informações são omissos, visto que são assuntos desinteressantes para a sociedade e fomentam a manutenção desse ciclo.
Seguimos em luta, buscando o fortalecimento de estratégias de saúde que combatam as desigualdades, os estigmas e os estereótipos, bem como o desenvolvimento científico de uma madura centralização de raça e etnia na elaboração, implantação e execução de políticas públicas no campo da saúde mental, sabendo que somos maioria da população brasileira e de usuários de saúde mental. Qualificar o quesito raça/cor nos instrumentos de saúde é importante para monitorar e avaliar as ações de promoção da igualdade racial previstas no Estatuto da Igualdade Racial, em que é garantida à nós acesso universal e fundamental que a política de saúde mental inicie discussão que vá além de recomendações de conferências, para que se definam estratégias para esse enfrentamento às violações que já se perduram anos.
A Rede Dandaras, que é uma organização de profissionais negras da saúde mental e está realizando o mapeamento de psicólogas negras, escreveu para as Blogueiras Negras à convite sobre o #SetembroAmareloPreto
Imagem – Blog População Negra e Saúde