Por Zaíra Pires para as Blogueiras Negras
Viver em uma metrópole é sinônimo de ser assediado a cada minuto por pessoas e grupos interessados em nos manter alheiros à realidade e seduzíveis por toda e qualquer propaganda que objetive nos convencer de empregar nosso tempo, dinheiro e emoções em suas causas, geralmente em função de obter lucros em progressão geométrica.
Diante de tamanha ofensiva em busca de nossos corações, mentes e bolsos, as escolhas que fazemos, quando vão na contramão do que é comum, podem nos causar alguns percalços no meio do caminho, mas, com certeza, nos dão o verdadeiro controle de nossas vidas e possibilitam o real exercício da cidadania e do respeito ao outro e ao planeta em que vivemos.
No entanto, em um país em que pesa a desigualdade social, a negação de direitos e de liberdades individuais, nem todos podemos fazer essas escolhas com a mesma tranquilidade. Há quem ceda ao status quo, há quem se negue a ceder e tome o quanto pode o controle de sua vida, e há aqueles que são vítimas de um sistema desigual em suas estruturas, que sequer precisam escolher a contramão, já estão nela com poucas chances de mudança.
Sair da Vila Madalena e ir pedalando pra Paulista é beleza! Quero ver sair da Parada de Taipas e pedalar até lá. Subir os morros da Av. Raimundo e descer o Cantagalo circulando suas curvas e pedras gigantes numa boa, sem escorregar pelas suas ribanceiras ou perder os pedaços pelo caminho (pedaços seus ou da bike). Se na principal avenida da cidade arrancam os braços dos ciclistas, imagina lá no fundão.
Uma ressalva importantíssima: super apoio o uso de bikes e a substituição de transportes motorizados pela magrela. Mas crer que todos têm essa opção é, no mínimo, ingenuidade. Galera depende mesmo do busão que sai do Recanto dos Humildes de 20 em 20 minutos catando a negada pelos pontos abarrotados e só vai até, no máximo, o Terminal Pirituba. Inclusive, em uma cidade com um trânsito assassino como a nossa, é uma escolha corajosa essa de usar bicicleta.
Mais importante ainda, é observar que, havendo transporte público de qualidade em quantidade suficiente para alcançar todos os bairros da cidade, os moradores de periferia poderiam sair de suas casas conciliando metrô e bicicleta da mesma forma que faz a galera da Vila Madalena.
Da mesma forma, ficamos tão absurdados com a repressão incisiva e violenta da Polícia sobre os manifestantes no centro de São Paulo, com bala de borracha e spray de pimenta, mas nem damos mais a mínima pra galera sendo assassinada à bala na periferia porque os PMs estão entediados e resolvem tirar o couro de algum garoto negro só pra se divertir. Aliás, o pessoal que acordou agora não dá a mínima, porque quem já tava na luta há mais tempo, sempre brigou por isso. É só ver o que (não) foi feito com relação aos mortos da Favela da Maré por vingança por que um policial foi assassinado e pelo sumiço inexplicado de Amarildo, que temos a dimensão de que, realmente, nada acontece quando matam pessoas na favela.
Mas eu quero dizer é que, durante boa parte da minha vida eu andei de ônibus+trem+ponte orca+metrô, usei roupas de segunda mão, doadas pelos primos distantes, tal como as roupas cinzentas que o Harry Potter ganhava do seu primo. Comia antes de sair de casa, porque se tivesse dinheiro pro cinema, não ia ter pra o lanche do McDonald’s depois.
Me lembro que no começo da primeira graduação que me aventurei a cursar (Design de Moda, que só frequentei por um ano, 2005), a dona da lanchonete acabou incluindo pão com ovo no cardápio, porque era o que eu comia na hora do café todos os dias, porque os pães de queijo com suco da unidade da Casa do Pão de Queijo de lá tinha lanches pequenos e caros e eu não tinha 10 reais disponíveis todo dia pra fazer uma boquinha na hora do intervalo e aguentar até a hora do almoço no Bom Prato. E apesar do SENAC, àquela época, já receber bolsistas do ProUni, sua estrutura não se alterou em um milímetro para nos incluir efetivamente.
Uma estratégia de quem pega metrô cheio todos os dias é embarcar no sentido contrário na penúltima estação, ir até a última parada, que é quando o vagão esvazia e aparece a oportunidade de se sentar e seguir o caminho no sentido certo até o destino final. O azar é quando o trem vai ser recolhido quando acaba essa viagem e dar essa volta foi só perda de tempo que não resultou em ~conforto~ nenhum. Eu já fiz tanto isso. Chegava uma hora que eu nem sentia mais raiva, tanto que já estava anestesiada do cotidiano. Aliás, não sentia mais nada, estava entorpecida, era tudo mecânico, porque era assim que a vida se apresentava pra mim.
De tempos em tempos, aliás, tento “colocar os dedos na tomada” pra evitar entrar nesse transe metropolitano que nos tira da vida e nos coloca numa sobrevida insípida, apenas trabalhando para continuar vivendo, e vivendo para poder continuar a trabalhar, sem saída, sem esperança e sem questionamento.
Então que, numa vida repleta de ausências, ao emergir socialmente (espero que logo, pq não aguento mais ser pobre), farei questão de consumir e frequentar tudo o quanto o dinheiro me permitir. Pagar 70 reais num prato de macarrão com carne moída na cantina do momento lá no Bixiga. Gastar 900 reais no free pass do Lollapalooza só pra circular e ver as pessoas, já que eu não conheço 85 % das bandas que vão se apresentar. Ir pro Oktoberfest mesmo detestando cerveja. Nem vou mais sofrer porque a cantora Pink nunca inclui a América Latina nas suas turnês, porque eu vou escolher a cidade europeia que mais me agrada e vou até lá assistir ao seu show e aproveitar pra fazer umas comprinhas.
Me dar o direito de demorar uma hora no banho. Ver o mais novo blockbuster no Cinemark do Iguatemi sem nem pensar em usar carteirinha de estudante ou o dia da semana e o horário da sessão (já que, geralmente, na quarta feira é mais barato, e antes das 17h tb). Nem importa o enredo do filme, só vou desfilar pelos corredores do shopping de chinelos havaianas e coque no alto da cabeça, tal como as patricinhas hipsters comprando um terninho da Gregory para fazer jogo com seu top croped do brechózinho que vende a preço de boutique. Vou esfregar meu cabelo crespo, minha pele marrom e minha lesbianidade na cara de todo mundo, porque, apesar de ser preta, aquele lugar vai ser tão meu quanto do resto dos seus frequentadores brancos. E ai de quem me lançar o menor olhar enviezado.
Faço questão de que meu Hyundai IX35 champagne perolado pintado sob encomenda combine com os saltos do meu scarpin Christian Louboutin, já que o rosado do carro ficará perfeito com o vermelho das solas dos meus sapatos e meu vestidinho preto despretensioso que pode ter custado 2 mil reais, ou não. Não que essas coisas sejam importantes, mas tenho o direito de conhecer as sensações que nunca fizeram parte da minha realidade.
E ninguém terá o direito de questionar minhas escolhas na contramão. Porque tem uma galera que escolhe ir de bike até o metrô em vez de colocar mais um carro nesse trânsito caótico, quanto mais um SUV imenso que ocupa quase o espaço de um ônibus. Tem uma galera que escolhe comprar suas roupas em lojas populares em vez de pagar 700 reais num jeans da Diesel. Tem bastante gente que toma banhos curtos, e quando está calor, desliga o chuveiro enquanto se ensaboa. Tem muita gente que escolhe viver com “somente o necessário” (felizmente tem quem escolhe isso. Mas ter o direito a fazer essas escolhas também é um privilégio).
Mas tem MUITA gente que vive desse jeito a vida inteira porque não tem outra opção, e perde 4 horas do dia num busão cheio porque não pode ter um carro, ou não pode escolher ter um emprego mais perto de casa, e se lava em 5 minutos porque, se a conta de luz aumentar, a cesta básica vai diminuir. E se uma parcela ínfima dessas pessoas, depois de muito trabalho, muita luta e uma pitada de sorte consegue acessar tudo a que nunca pôde, não recusa e cede ao conforto e ao consumismo, não há ninguém que possa condenar.
E eu ainda vou experimentar a sensação de dirigir um SUV e olhar o resto do mundo de cima só pra saber o gosto que tem. Ainda serei a mesma pessoa, com as mesmas convicções, mas esse é um gosto que eu faço questão de provar, sem dor e sem culpa, por quanto tempo eu tiver vontade. Como mulher e preta, não serei mais parte das estatísticas negativas, e representarei as minhas irmãs nessa nova vida, com novos gostos, mas com as mesmas origens, e continuarei lutando todos os dias para que o meu povo tenha o mesmo direito de escolha que eu terei e faça dele o que bem entender.