Há alguns anos minha irmã atravessava um momento delicado em sua vida e também imergia numa biografia de Malcolm X. É uma leitora voraz de biografias e todo mundo sabe a importância de um bom livro quando as coisas estão difíceis. Eu sou fã do Malcolm e por isso a tinha presenteado com esse livro. Gostava de ouvi-la tecendo comentários sobre a leitura, é uma mulher perspicaz. Mas ela costumava me criticar por dizer que eu tinha uma visão romantizada dele. Um dia minha irmã leu a seguinte fala dele: “Todas as mulheres são, por natureza, frágeis e fracas. São atraídas pelo homem, em quem enxergam a força”. Começamos a conversar sobre a relação dos homens negros conosco, mulheres negras, e em certo momento ela me acusou: “Você coloca raça na frente de gênero!”. Pensei um pouco em algumas das péssimas experiências que eu tinha tido com feministas brancas e terminei concordando com ela. É, eu fazia isso mesmo. Na verdade, eu ainda iria demorar a entender que, como Audre Lorde, sou negra e mulher e por isso “não posso me dar ao luxo de lutar por uma forma de opressão apenas. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as frontes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir”…
Mas os aprendizados chegam a galope. Recentemente estive num relacionamento romântico com um homem negro cis-hétero. Faço questão de enfatizar nessa história a presença do conceito do amor romântico, esse veneno burguês, que nos condiciona a naturalizar violências. De uns tempos pra cá tenho conversado com outras mulheres negras bissexuais e também com as lésbicas e héteras sobre essa nossa aspiração de viver um amor afrocentrado. E são muitas as narrativas das que caíram na armadilha de romantizar uma relação entre pessoas negras e se sentirem ainda mais vulneráveis, manipuladas pelos dispositivos discursivos dos abusadores. Me pergunto se afinal de contas nós fazemos ideia do que cargas d’água é esse amor afroncentrado sobre o qual estamos falando, ou se estamos construindo fantasias e pobres simulacros para justificar a velha e má colonialidade de sempre. Sonhamos simetrias de poder e somos arrastadas no lodo de relacionamentos abusivos. Paradoxal e contraditório? Sim. Infelizmente, também cotidiano. Nenhuma de nós está imune.
Minha Mestra, uma mulher que além de muita sabedoria, tem um senso de humor delicioso, me disse que eu sofria de “ingenuidade racial”. E aqui preciso reconhecer que todos os momentos de perda de ingenuidade em minha vida foram fundamentais, dolorosos e fecundos. Compreender que o mundo não é como nós gostaríamos que fosse é imprescindível para ter a lucidez de percebê-lo tal como está colocado. É o que nos permite aprofundar uma perspectiva mais ampla, a fim de construir as ferramentas do vir-a-ser. Basta olhar para nossa própria história, a perversidade colonial em nossas vidas. A desconfiança é mais que necessária, é sobrevivência. É triste e mesquinho ver que quaisquer signos de vantagem na sociedade cis-héetera-branca-cristã-capitalista são utilizados para se exercer contra: ‘Oprimo alguém, logo existo’. Nas categorias subalternas também se criam hierarquias internas de dominação, esquecemos de quem é o inimigo e começamos a lutar entre nós mesmxs para não sermos devoradas por outrxs do nosso próprio grupo.
Uma categoria oprimida não é uma categoria homogênea e estar situadx em um (ou vários) grupos informa a respeito dos lugares desiguais de onde partimos na disputa de poder e recursos. Estamos todxs às voltas com nossos conflitos e contradições, lidando com as lacunas entre nossa teoria e nossa prática. Mas isso não isenta ninguém do compromisso ético nem confere salvo conduto moral para agredir outras pessoas. Afinal, somos sujeitxs, somos diversxs, e todos os dias (várias vezes por dia) temos a agência de tomar decisões e pautá-las nos valores que construímos. Tem pessoas que decidem lutar contra as opressões e tem pessoas que só lutam contra as opressões das quais não se beneficiam. É uma escolha muito pobre, e como se fosse possível alguma vitória não-precária para nós nessa lógica individualista… Mas nos alerta que nunca, mas nunca mesmo, devemos subestimar o espírito colonial das ratazanas, que pode ser assumido por quem menos esperamos.
Não é por acaso que o pensamento interseccional é uma epistemologia elaborada pelas mulheres negras. Desde a nossa posição, somos obrigadas a entender como a articulação das opressões opera de formas entrecruzadas, pois quaisquer refúgios nos binarismos reducionistas não nos cabem. Pelo contrário, a busca por uma solução fácil, um entendimento de mundo limitado, não é uma possibilidade para nós. Esta organização da sociedade que aí está não foi construída nem por nem para nós. Não existimos, estamos em outro lugar: no fim do mundo, sem moedas para negociar nesse sistema doentio. E é a partir desse não-lugar, de corpos e mentes desautorizadxs e desobedientes, que rompemos com o pacto da colonialidade. Afinal, quem é que se preocuparia com o ponto de vista do tapete que está sendo pisado? Pois é, pessoal, cá estamos. Como bem disse Lélia Gonzalez: “O lixo vai falar, e numa boa”.
Gosto tanto dessa frase, adorei quando a vi no início do livro da Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala? (2017). Trabalho bonito e acessível, recomendo. Agora mesmo, enquanto escrevo esse texto, Djamila está sofrendo ataques na internet, muitos vindos de outrxs ativistxs negrxs. Aqui caberia muito a ser dito sobre possibilidades de divergir sem destruir e sobre o que entendemos por solidariedade racial, mas só quero trazer um pouco de uma experiência pessoal mesmo. Há alguns meses tive a oportunidade de conhecê-la e fiquei comovida com sua firmeza e sensibilidade. Sempre que conheço uma mulher negra que ganhou destaque e manteve uma caminhada coerente, manteve humildade, me sinto inspirada. Não é nem pela trajetória de realizações delas em si (isso também!), mas fico me perguntando como elas conseguem administrar emocionalmente essa posição. Já percebi que não precisa muito: qualquer cinquenta centavos de visibilidade nos joga numa arena de hostilidades mil. Afinal, é muito fácil dar tiro em mulher preta. Sobre Djamila e tantas outras que nos representam e carregam os legados da nossa ancestralidade, faço votos de que sempre encontrem saúde física, emocional, mental e espiritual – que nunca adoeçam das mazelas das ratazanas. Me sinto grata de me deparar com essas mulheres na travessia e afirmar uma vida de saúde também para mim.
Para mim essas mulheres são uma expressão poderosa do que a Angela Davis fala sobre usar as diferenças como uma “fagulha criativa”, para “criar pontes de comunicação com pessoas de outros campos”. Aqui peço licença a Angela Davis para me debruçar sobre essa imagem tão bonita: acredito que podemos ao mesmo tempo ser e promover o sopro dessas fagulhas. Mais do que isso: podemos produzir imensas fogueiras coletivas, alimentar o calor criativo numa dimensão política. Historicamente, estamos sendo discriminadas e empurradas para zonas áridas de exclusão – inclusive afetivas. Não nos conformamos com essa sina e também não nos interessa esperar pela legitimação ou validade externa de nossas vidas, atos e pensamentos. Grada Kilomba cita Lola Young ao dizer que a mulher negra inevitavelmente “serve como Outro para Outros sem ter status suficiente de ter um Outro para si” (tradução minha). E bell hooks já havia dito: “somos o grupo que não foi socializado para assumir o papel de explorador/opressor, na medida em que não nos é permitido nenhum Outro institucionalizado que possamos explorar ou oprimir” (tradução minha). Ou seja, somos o Outro de todo mundo e não há Outro para nós – e na verdade nem nos interessa que haja, pois somos nós mesmas quem nos autorizamos ao incediarmos as concepções dualistas e hierárquicas de relações.
Quem me conhece sabe que sou libriana e tenho uma inclinação incorrigível para a conciliação. Meus primeiros (e até segundos, terceiros etc) esforços são sempre no sentido do diálogo. E como são vários os recortes que nos atravessam, isso está relacionado com minha história: sou do interior e devo minha formação política às trabalhadoras rurais com quem milito há quase dez anos. Desde que estou no MMTR-NE, cometi inúmeros equívocos, desde declarações que reproduziam pérolas do senso comum, sem nenhum ou com pouco entendimento do que estava sendo reproduzido nelas, até o planejamento de atividades de formação meio tediosas e inadequadas, reflexos da minha trajetória de educação altamente institucionalizada. Se hoje posso revisitar meus próprios desacertos com tranquilidade, é porque sempre encontrei entre as trabalhadoras rurais acolhimento e compreensão: a possibilidade de olhar para um engano e vê-lo fértil de ensinamentos, vê-lo como um conteúdo tão digno quanto qualquer outro no exercício coletivo de aprofundar uma perspectiva e uma prática feminista. Ao longo dos anos junto às mulheres rurais, não sofri uma única experiência de humilhação: sempre fui respeitada nas muitas dimensões do meu ser, mesmo sem ter praticamente nenhum conhecimento sobre agricultura e estando entre mulheres que têm uma grande expertise no trato com a terra. Por ter me inserido no debate político a partir dessa experiência, talvez eu tivesse uma visão romantizada também sobre o ativismo.
Foi só depois na minha vida, cursando uma pós-graduação pública e morando numa capital, que conheci essas expressões atualmente tão comuns de ativismo self made. Muitas pessoas que tem pouca ou nenhuma experiência de construir processos organizativos coletivos, exaltando discussões vaidosas em redes sociais e perseguindo a qualquer custo uma projeção e celebritização de si mesmas. A universidade está cheia delas. Longe de mim desqualificar quaisquer estratégias de resistência, mas é inegável que há um esvaziamento e individualismo no que parece ser a principal formação política de muita, muita gente. E é inclusive previsível que uma estrutura eurocêntrica como a academia permita (e até estimule) que a produção de conteúdo teórico dxs sujeitxs possa se dar de forma completamente desconectada de sua ação de mundo, numa competitividade desesperada, sob a cadência de sucessivos desrespeitos. O exemplo da academia é na verdade apenas um: o que não falta é ativista estrela, ativista com ótima retórica e reproduzindo comportamento semelhante a tudo aquilo que critica com tanta eloquência. Uma amiga brinca (mas nem tanto) que desistiu dos homens ‘desconstruídos’, vai procurar os conservadores de direita pra ver se encontra coerência. A gente se propõe a sentar e dialogar, mas a duras penas aprende que uma postura de abertura e escuta inevitavelmente encontrará limites. As marcas da colonialidade se manifestam em relações pautadas por lógicas extrativistas e irresponsáveis. E não há diálogo possível com quem quer te destruir.
Quem já saiu de uma relação abusiva sabe como é difícil falar sobre isso, repudiar o isolamento e o silenciamento a que somos empurradas. O escrutínio público é cruel e não mede forças para nos deslegitimar. Num geral, são muitos e diversos os estragos deixados em nossas vidas enquanto quem abusa segue isento, protegido pela cordialidade em torno da violência contra as mulheres. Sempre estive perto e ouvi relatos de mulheres que conseguiram romper com ciclos de abusos, alguns inimagináveis de tão violentos. E me tocava perceber que em suas narrativas há um momento em que elas chegavam ao limite e passavam a defender a elas mesmas, voltando a se reconhecer depois de períodos em que suas identidades estiveram difusas. Para nós, corpos racializados e dissidentes, ousar existir de outra forma que não como instrumentos para servir à articulação entre patriarcado, capitalismo, racismo e cis-heteronormatividade é uma afronta imperdoável a um sistema que nos quer objetificadas e submissas. E o processo de coisificação/mercantilização dos corpos “valora” as mulheres de acordo com a leitura social dos códigos relacionados a estes corpos.
É possível observar um exemplo concreto dessa valoração a partir da leitura de um excelente artigo-resposta de Sueli Carneiro: Gênero, raça e ascensão social (1995). Ela vai elaborar com maestria uma contra-argumentação negra e feminista para um texto de Joel Rufino dos Santos, um homem negro, no qual ele explica que os negros que sobem na vida arranjam logo uma branca e de preferência loira, pois a branca é mais bonita que a negra, um símbolo de prosperidade: “Quem me conheceu dirigindo um Fusca e hoje me vê de Monza tem certeza de que já não sou um pé-rapado. O carro, como a mulher, é um signo”. Aqui pedimos que por favor considerem o período em que foi escrito o texto, pois os exemplos de marcas de carro estão um pouco ultrapassados. A misoginia no pensamento de Joel Rufino, por outro lado, segue atualíssima. As vantagens que um homem negro consegue alcançar nessa estrutura social são ínfimas, precárias. Ainda assim, encontram na objetificação das mulheres negras um lugar de “poder”. A feminista indiana Uma Narayan lembra que integrar um grupo oprimido não necessariamente leva o indivíduo a ter uma maior compreensão de questões relativas a um outro tipo de opressão: “Digamos que as circunstâncias históricas muitas vezes conspiraram para tornar homens da classe trabalhadora mais chauvinistas em algumas de suas atitudes do que outros. Às vezes, algum tipo de sofrimento pode simplesmente tornar os indivíduos insensíveis a outros tipos ou deixá-los sem energia para se interessarem pelos problemas de outros grupos”.
Na minha vida e na vida das mulheres negras com quem caminho, é inevitável nos depararmos com a problemática dolorosa de interromper os abusos contra nós ao mesmo tempo que contextualizamos os comportamentos e as categorias envolvidas. Isso demanda muito auto-controle, paciência, capacidade de empatia e percepção crítica. Tem que ter o couro curtido – mas não tem que ter sangue de barata. Quando por fim denunciamos injustiças, somos “loucas” ou estamos afundando em “auto-piedade”. Em minha história recente, foi um episódio de apropriação intelectual do meu ex abusador que me fez chegar no meu limite. Algo aparentemente pequeno, relativo a uma fantasia e bloco de carnaval. Mas nutro um grande carinho pelas minhas ideias, mesmo as despretensiosas. Minhas ideias, minhas palavras, meus projetos, são o meu manifesto: nelxs meto meu sangue e me expresso no mundo. E ninguém vai roubar a minha própria fagulha criativa nem construir visibilidade em cima dos meus ombros.
Depois que parei um pouco para pensar tive que admitir que não há enredo mais repetido do que esse. Isso não aconteceu “comigo”. O roubo não é exceção, o roubo é a regra colonial. A apropriação, a exploração, a violência, conquista e o avanço sobre nossos corpos, mentes e territórios. A regra é arrancar tudo o possível, nos deixando sem recurso algum. E esse episódio por fim me motivou a sentar e escrever sobre apropriação de ideias e trabalhos de mulheres. Mas numa breve pesquisa, percebi que a dimensão dessa tarefa era imensa e este texto terminou seguindo por outros caminhos… Aproveito para agradecer às várias pessoas que me apoiaram nessa investigação inicial, trazendo tantas referências históricas de diversas áreas e muitos, muitos depoimentos pessoais. Precisei adiar esse projeto por entender a seriedade que uma pesquisa dessas pede, o que no momento me demanda recursos que não possuo. Fica o compromisso de desenvolvê-la, em parceria com várias outras “loucas” incrivelmente competentes que confiaram em mim para trazer relatos dos roubos que sofreram. bell hooks nos ajuda a enfrentar a desqualificação das nossas vozes: “sujeitas negras radicais são constantemente taxadas de loucas por aqueles que esperam minar nosso poder pessoal e nossa capacidade de influenciar os outros. Medo de ser visto como insana pode ser um fator importante para evitar que as mulheres negras expressem seus Eus mais radicais” (tradução do irmão Rafael de Queiroz). Máximo respeito por todas essas mulheres valentes, que me relembram que o silêncio não nos protegerá, como disse Audre Lorde.
Mergulhando nas reflexões dessas histórias, retornei à minha própria vida. E como ninguém aqui foi socializadx em Marte, em dado momento precisei me fazer a pergunta mais difícil: quando foi que eu mesma roubei? Foi duro perceber que não sei precisar onde reproduzo isso. Quem rouba, esquece. Quem é roubadx, perde um pedaço. Quem não tem, sente a falta. Olho ao redor e sei que sempre estive cercada de precariedades e violências, mas também de vantagens. Moro na favela, mas abro a torneira e tem água corrente. Já estive vezes suficientes em comunidades rurais no sertão nordestino pra saber a importância que isso tem. Essa é apenas uma, são tantas que mal enxergo, naturalizo. Lamento minha ignorância sobre tantos aspectos e se algo de valioso nasce a partir desses desrespeitos é me arrancar da compaixão “teórica” para me lançar a entender/mudar o mundo assumindo meu lugar de sujeitx éticx. Ninguém é inocente, todxs temos uma agenda, inclusive emocional. Acessar uma vantagem é acessar uma ferramenta e cabe a mim decidir se vou assumir responsabilidades ou deixar a sujeira para outrxs limparem. A questão é: partir dos nossos diferentes e desiguais pontos de partida, a que projeto vão servir as vantagens que eu/você conseguimos acessar?
Podemos nos recusar a caminhar na sarjeta, na avidez abjeta do roubo. A mim não interessa desonrar a ancestralidade, deixo os restos às ratazanas. Estamos exaustas de roubos e silenciamentos, de sair estilhaçadas de espaços e relações violentas. Sou uma mulher e sou negra, quero existir com dignidade, não quero ter que matar para não morrer. Mas acontece que o negócio é o seguinte: se precisar matar, eu mato.
Referências:
. Angela Davis, em As mulheres negras na construção de uma nova utopia (2011)
. Audre Lorde, em Não existe hierarquia de opressão (1983)
. bell hooks, em Shaping Feminist Theory (1984)
. Djamila Ribeiro, em O que é lugar de fala? (2017)
. Gabriela Monteiro, em Os homens que odeiam as mulheres (e o bem dito amor entre nós) (2016)
. Grada Kilomba, em Plantation Memories (2008)
. Manning Marable, em Malcolm X – Uma vida de reinvenções (2011)
. Sueli Carneiro, em Gênero, raça e ascensão social (1995)
. Uma Narayan, em O projeto de epistemologia feminista: perspectivas de uma feminista não-ocidental (1988)