Toda entrevista tem um sabor único, uma experiência. E foi assim a nossa conversa com a Nochê Sandra de Xadantã, sacerdotisa da tradição do Tambor de Mina do Maranhão, trazido para Diadema na bagagem e no coração de Francelino de Xapanã na década de 1970, que se tornaria nosso pai e Príncipe da Nação.
O pano de fundo desse registro foi a Marcha das Religiões Afrobrasileiras, que acontecendo em diversas cidades brasileiras, especialmente dia 08 (São Paulo, Salvador, Sergipe, Rio de Janeiro, Foz do Iguaçu, com mobilização em Belém) contra o Recurso Extraordinário 494601 a julgado no STF no dia 09 de agosto. Um ataque que busca tornar crime as práticas rituais com animais dentro das casas de santo.
Na primeira pergunta, ainda nos bastidores, quisemos saber qual a melhor palavra para definir o que acontece em nossas casas de santo. Seria imolação? A discussão foi tão boa, que decidimos registrar essa conversa desde esse momento.
Como filha, peço então licença e a bença à minha mãe, a quem tanto admiro e com quem tanto aprendo sobre o que é política e amor. Obrigada por essa conversa tão preciosa e pela oportunidade de publicar suas palavras. Já queremos mais.
Mantijaló e boa leitura!
(…)
Nochê Sandra de Xadantã – Qual seria a nossa proposta na verdade? É que existe na lei, na constituição brasileira, se não me engano acho que são judeus e muçulmanos (que também) tem essa tradição do abate e da imolação dos seus animais sagrados. Então assim, o que a gente quer é o seguinte, a gente lutou muito para que a gente não entrasse nessa questão né… Imagina um país igual ao Brasil que veio de tantas culturas e cresceu em cima da escravidão do negro e a cultura afro sempre foi olhada… Porque é bonito assim, é bonito olhar o Afro quando? É bonito olhar o Afro no carnaval, na cultura da Bahia. A parte bonita o folclore todo mundo quer contar.
E quando a gente fala da questão da religião em si, a gente está pedindo só respeito. Então porque as outras podem e porque a nossa não pode? Se existe a lei para as outras religiões porque não por religião afro dentro dessa lei e não excluir, isso não deve, isso não é certo? Então a gente está chamando pessoal pra Marcha (das Religiões Afrobrasileiras) para também dar esse olhar pras pessoas. A gente está querendo falar de inclusão, a gente também quer se incluir nessa lei. Porque existe para os outros, porque é que não vai existir pra gente?
Charô Nunes – A gente gosta quando a entrevista já começa assim. Na verdade ia agradecer em nome das Blogueiras Negras pela oportunidade de falar com a senhora. Para todas mulheres que conversam com a gente começamos perguntando quem é você. Então gostaria de respeitosamente perguntar para a senhora quem é a Nochê Sandra de Xadantã. E que também explicasse para as pessoas o que é o Tambor de Mina e qual a sua ligação com a África.
Nochê Sandra de Xadantã – Como você mesma já adiantou meu nome religioso, eu sou a Nochê Sandra de Xadantã da tradição Tambor de Mina. Nasci, cresci nessa tradição e tenho, vou completar meus 33 anos de santo feito. O que é a tradição do nosso Tambor de Mina? O Tambor de Mina tem uma ligação de duas casas matriarcas, que é a Nagô Abioton e o Kwerebentan de Zomadonu e dessa fusão, dessa relação de casas coirmãs, o Kwerebentan de cultura Fon e a Casa de Nagô muito próximas até lá em São Luís.
E desse cruzamento, pra quem vai lá no Maranhão as pessoas entendem do que eu estou falando. Porque a gente sempre fala desse cruzamento? Porque o Tambor de Mina fala as duas línguas, transmitam dentro do culto as duas línguas, tanto Fon quanto Nagô. Dessa cultura que se instalou numa parte do Nordeste e seguiu pro Norte do país e depois de muitos anos veio pro Sul, com chegada do Tambor de Mina com pai Francelino. Essa é a nossa cultura ancestral.
Charô Nunes – A senhora poderia falar um pouco da atuação de Toy Vodunnon Francelino de Xapanã e sua atuação política na defesa das religiões de matriz africana?
Nochê Sandra de Xadantã – O Toy Francelino de Xapanã começa essa luta a partir de 1987, quando ele faz os preparativos para fundar a Federação daqui de Diadema (Fucabrad, Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros de Diadema) e com isso ele foi desmembrando e desbravando outros lugares. Foi ele quem criou e montou junto com o Cássio (Ribeiro) e ficou à frente até falecer. Daí através disso pai Francelino entra na Intecab São Paulo como coordenador. Ele tinha muito essa ligação com o Intecab, que é um órgão nacional, a direção dele na Bahia. Depois ele chegar ir até a Secretaria da Justiça ser um dos coordenadores desta questão da cultura interreligiosa.
E a gente foi crescendo e trabalhando e vendo isso dele. E eu acho que muito desses movimentos que hoje vão pra rua, vamos brigar, vamos lutar, se você foi ver de 12 anos pra trás, em todas ele participava, com gente, com deputados com quem ele estava sempre envolvido em prol da religião. É isso que a gente quer, mais pessoas com a mesma luta, brigando pela mesma coisa, a nossa religião, o nosso reconhecimento e o nosso direito. Somos brasileiros temos o nosso direito. Estado laico e que agora está querendo proibir os brasileiros de ser aquilo que ele é, então não dá pra entender o que está acontecendo com esse país?
Charô Nunes – Nós que estamos dentro do Candomblé sabemos que não estamos numa religião violenta. Mas a gente vai perguntar pra dizer pra eles. O Candomblé e o Tambor de Mina são religiões violentas? O que os nossos cultos pregam e difundem?
Nochê Sandra de Xadantã – Olha não tem nem como falar que seria uma tradição violenta. É uma tradição que abriga jovens, crianças e idosos. É uma tradição que ainda mantém o respeito. Então não tem essa questão de violência e nem para violência. E toda religião está para instruir e melhorar, então ela não pode ser olhada como feito de violência. Se eu estou para fazer o seu melhor existir, como é que eu vou pregar uma coisa que não seria boa?
Em nenhuma cultura religiosa pode se ter esse olhar. E no Brasil é assim existe uma luta de desigualdades, dos seus coiguais, que eu acho muito triste no país. Porque às vezes as religiões mais antigas estão ficando de fora de uma grande forma de natureza que o ser humano não vem exercendo. Dentro dos terreiros é o lugar onde as crianças ainda pedem benção para seus mais velhos, coisa que você não vê em outros lugares. Então se mantém a tradição do respeito e a tradição de paz, de cultura mesmo de paz, que é isso que a gente faz.
Charô Nunes – Quem olha com outro olhar é que está sendo violento com a nossa tradição?
Nochê Sandra de Xadantã – Certeza né quer dizer aquilo que eu não conheço e aquilo que eu não tenho segmento, eu não tenho respeito, que é o que a gente sente em quase todas as casas. Mas quem conhece… E assim isso não existe violência, são vários segmentos nós somos divididos em várias tribos, um é Fon, o outro é Nagô, o outro é Xambá, outro é Angola, outro é Ketu e todo mundo se trata com respeito. A gente não precisa se destratar, se desfazer, se desrespeitar pra dizer quem somos, como a gente segue e cultuar nossos deuses, ter a nossa cultura.
Charô Nunes – E porque as nossas religiões de tradição de matriz africana são tão atacadas? É racismo religioso, é desinformação ou tudo isso junto?
Nochê Sandra de Xadantã – Eu acho que realmente é um misto de tudo isso. Cresceu com aquela história que veio do negro, então chegou no país sem ter licença, chegou arrastada, acorrentada e por um grande período as pessoas tinham nesse olhar que vinha do negro não era bom. O que vinha do negro não era bom. Então fico imaginando, teria que se derrubar um monte de parede, um monte de prédio, teria que queimar um monte de fazenda, tinha que acontecer muita coisa nesse país pra falar que o que veio da força do negro não seja boa.
E a falta de informação. Como os cultos, até para poder se manter, se preservar acabou ficando muito preservado e muito segmentado dentro de suas casas… E infelizmente isso em todas as religiões têm, não só na nossa. Existe aquelas pessoas que se aproveitam daquilo que pode ser o demoníaco, o satanismo, faz aquele lugar errado da religião, porque não conhecem, não aprendem, não estudaram, não viram. E aí essas informações trocadas é que fez com que as pessoas tivessem olhar trocado da religião.
Porque todo mundo que segue uma casa séria, de respeito, todo mundo vai, que aprende e convive, é muito normal. Tá pra mim, tá pros meus filhos, tá pros meus netos, tá pra todo mundo.
Charô Nunes – E de quando é essa ideia ou esse ataque de que a imolação é um o um crime? Isso é novo ou já veio de antes?
Nochê Sandra de Xadantã – Isso é muito antigo, essa questão de não querer os rituais. Pessoas não querem, só que elas têm que entender o seguinte: que essa carne que a gente sacrifica, esses animais, seja lá qual for o nome que quiser dar, não é uma carne que você vai jogar fora. Esse o manuseio, a hora do sagrado, da imolação, é muito séria pra gente. Então esses animais, não é que a gente pega de qualquer jeito, muito pelo contrário. Até o animal chegar até aquele Orixá e aquele Vodun que ele vai ser oferecido, o animal passa por banho, ele passa por defumação, ele passa por um bando de coisa.
Então não é que a gente pega e vai lá e faz de qualquer jeito. E também a gente não leva aquilo que ficou e usou depois de tudo. Dentro da religião tudo tem uso, então os couros dos bichos a gente usa para as nossas tambores. As carnes, as que sobram é feito axé depois da festa e quando sobra, e graças a Deus sobra porque em casa de santo não existe miséria, são lugares prósperos e fartos, a gente sempre divide com filho de santo, com amigo do amigo do filho de santo que às vezes está passando necessidade.
Tem casas de perto de algumas comunidades que divide as comidas, então é muito difícil falar aqui que aquilo é uma coisa de qualquer jeito. É de qualquer jeito pra quem não conhece, é de qualquer jeito pra quem nunca viu. E assim eu acho muito complicado estar movendo essas leis e todas essas coisas agora, se não são pessoas que conhecem a cultura do candomblé. Por que ela deveria conhecer né, eu acho que você só pode impor uma coisa dessas num país do tamanho do Brasil se você for lá e conhecer.
Porque nós também fazemos as nossas lutas, em cada em cada local, em cada estado. Sempre procuramos orientar as pessoas até como você vai devolver essas coisas para natureza. Tem muito trabalho, muito pensamento, vamos ouvir o que todo mundo tem dizer.
Charô Nunes – As religiões de matriz africana tem sido atacados não somente relação ao abate.
Nochê Sandra de Xadantã – É o problema com os horários, porque todo mundo sabe que o Candomblé se tornou muito noturno, até porque o candomblé se torna noturno quando os negros só tinham aqueles horários da madrugada para poder reverenciar seus Orixás. Com isso veio a cultura do candomblé ser feito muito à noite e hoje em dia continua porque as pessoas hoje em dia tem seus empregos. Graças a deus na maioria das casas de candomblé as pessoas trabalham, as pessoas estudam, fazem suas faculdades, têm suas famílias, constituem seus filhos, todo mundo tem a sua rotina diária.
Então assim, o problema com barulho, problema com toque, o problema com sacrifício, o problema que se você está na porta para despachar água você está jogando uma água fora de hora, porque a calçada pública. Tudo é um motivo para que as pessoas falem mal das casas de Candomblé.
Charô Nunes – Qual a importância da Marcha das Religiões Afrobrasileiras nesse contexto, qual a importância de a gente ir?
Nochê Sandra de Xadantã – Estamos falando de uma teia de pai de santo que estão lutando contra isso, na verdade (é uma) grande mobilização que eu tenho chamado a atenção de muita gente agora, não estamos preocupados agora com uma liderança, a gente quer na verdade todas as lideranças.
A gente quer federações, as casas de santo, se você conhece alguém, algum sacerdote, porque às vezes tem pessoas que não estão mesmo focadas no que está acontecendo fora do seus ilês… Se você tiver contato com esse sacerdotes que você vá lá, seja quem for, fale o que está acontecendo. Porque é uma coisa séria, é uma coisa que vai abater em cima de todo mundo, é uma lei que vai pegar todo mundo.
Ela vem do Rio Grande do Sul, já não é a primeira vez que ela bate na trave, começou lá e agora está vindo de novo, conseguiu chegar em Brasília, vai ser votada dia 09 (de agosto). Então a gente está chamando todo mundo, todas as frentes que a gente conhece que fala da rede da religião: federações de Diadema, pode ser de São Bernardo, pode ser de São Paulo, de todos os lugares que a gente sabe que tem.
E em todas as casas de santo, os pais de santo tem que se mobilizar. Porque se a gente não mostrar força agora, se nessa hora a gente não tiver coragem de colocar a nossa roupa branca ou colorida, seja lá como for como a gente gostar, mas se a gente não for lá e colocar os nossos filhos no pescoço e reclamar pelos nossos direitos, realmente depois então não adianta reclamar.
A gente briga muito para as casa se legalizar, a gente briga muito para as pessoas poderem usar seus fios, suas insígnias, mostrar quem você é… E com razão porque cada dia que passa a gente a gente vem sofrendo pequenas gotas de abate. Eu canso de falar que a gente está de volta à caça às bruxas, estamos voltando aí numa Inquisição disfarçada e porque agora gente não sabe mais quem é que está caçando a gente…
É o legislativo? É o legislativo que está caçando a gente agora? Mas porque ele está caçando gente agora, se a gente é brasileiro e paga imposto, a gente é consumista, compra comida, compra flor, compra uma infinidade de coisas, que é tudo aquilo que a gente usa, então porque a gente não pode ter o nosso direito? Se eles estão reclamando de alguma coisa, de alguma informação que a gente não consegue enviar, o que eles acham que a gente não tenha, vamos sentar e conversar. Mas não proibir uma coisa que é um ato sagrado.
Porque a gente também não vai na porta de ninguém reclamar das coisas que os outros fazem. A coisa mais difícil de você ver alguém do santo reclamando, bater na porta dos outros, enchendo o saco. Você não ve ninguém do santo fazer isso então a gente está indo pra Marcha (das Religiões Afrobrasileiras), a gente está falando não para o Brasil.
A gente está querendo falar, olha nós estamos aqui, nós somos brasileiros a gente tem a nossa fé (e) não estamos preocupados com a fé dos outros, não estamos desfazendo da fé dos outros. Se existe uma brecha, se existe uma lei que abrange outras culturas e outras nações, seja lá como for, porque que não coloca a nossa? Então agora vamos lutar em cima disso.
Imagem: Arquivo pessoal