Falar sobre amor é difícil… Não! Falar sobre o exercício de demonstrar, cultivar, enriquecer o sentimento de amor é que é difícil. A muito quero falar sobre esse sentimento, mas não encontro palavras para tal, tão pouco consigo sintetizar a minha sensação de constante fracasso em amar.
Se relacionar é uma tarefa árdua para muitas pessoas por diversos motivos, feridas passadas, baixo-autoestima, dificuldade de comunicação etc… Para pessoas negras se relacionarem “romanticamente”- aqui especificando- se torna um pouco mais complexo e não se torna mais “fácil” se for um “Dengo”-palavra de origem africana incorporada ao vocabulário brasileiro utilizado aqui no lugar da palavra amor – afrocentrado como muitos pensam.
Há três anos e meio comecei a ter consciência- Com isso quero dizer que comecei a ter leituras, que comecei uma reflexão- mais ampla sobre a minha identidade e sobre como o mundo me via. Comecei a ler questões que repercutiam na minha existência enquanto mulher negra e pobre, comecei a desconstruir pensamentos/falas racistas impregnado em todos os ambitos de minhas vivências, inclusive no âmbito afetivo. Isso não foi tão rápido e fácil. Descobri ao longo desse tempo, desse curto tempo para descobrir uma historia de décadas que reflete na minha existência,que as feridas que guardava em mim não eram unicamente minha responsabilidade,que os meus medos foram construídos pela sociedade para me paralisar, que os olhares que eu recebia não eram coisas da minha cabeça, que a minha raiva tinha uma razão, e que não me sentir parte também tinha um porque.Foi dolorido mas me libertou. Ainda é dolorido, mas agora tenho ferramentas e consciência da estrutura racista que tenta me esmagar e dentro dos meus caminhos, tento lutar contra essa estrutura.
No entanto, amar ainda me traz uma sensação de fracasso, porque? Porque algo tão prazeroso traz uma sensação tão angustiante? Nunca entendi muito bem porque e talvez ainda não entenda, só sei que é preciso falar sobre, pois esse direito há muito tempo nos foi negado, desde o tempo da escravidão o qual não podíamos ter relações com nossos iguais, éramos estupradas e criar laços afetivos queria dizer sofrer a cada dia com a perda dos nossos parceiros mortos pela chibata.
Sou uma mulher negra, mas sempre pensei, mesmo depois de “consciente”, que isto não influenciasse em como eu demonstro afeto. No entanto me deparo com vícios doentis de me relacionar, brigas constantes, baixo autoestima, mesmo sendo amada, e constante medo.
Conforme a socióloga Bruna Pereira, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem), da Universidade de Brasília, “As mulheres pretas se casam mais tarde, apresentam maior índice de celibato e demoram mais para terem um relacionamento”, isso dificulta o nosso processo de aprendizagem afetiva. O que quero dizer com isso é que tudo precisa de pratica não é mesmo? Até mesmo o ato de amar. E nós mulheres negras tardamos nessa pratica e por isso muitas vezes cansamos de esperar ter a “experiência” com o amor, mas… E quando ele chega? Como devemos agir? É real? O cara realmente me ama?
A fim de especificar esse dialogo sobre amor trago aqui experiências próprias. Em meu primeiro relacionamento, com um cara branco, depois de varias outras paixonites interrompidas com “ ele nunca vai olhar para mim” sempre por caras brancos, já na faculdade, com baixa auto-estima e tentando me inserir em um mundo que eu não me via,me perguntava constantemente “ ele gosta de mim ou gosta do meu corpo?” Pela falta de desejo de homens da minha idade em se relacionar comigo e constante hipersexualização de homens mais velhos se referindo ao meu corpo, me questionar se não era por isso que o meu parceiro estava “atraído” por mim era uma forma de me proteger em minha maneira de amar (sempre muito intensa) e um medo de não ser amada como outras meninas. Lembro-me que me senti sortuda por depois de oito meses ele ter “assumido” nosso namoro nas redes sociais e ter andado comigo de mãos dadas na rua. Fiquei feliz, que depois de um termino pós três meses de namoro, por eu ter me negado a perder minha virgindade com ele mesmo o amando, ele ter se visto apaixonado por mim, quando me interessei por outro cara, e ter pedido para voltar comigo. Quis ser a “desconstruidona” aceitando seus abusos e suas “liberdades” durante o namoro com medo que ele não entendesse minhas inseguranças da “menina que nunca foi escolhida” como objeto de afeto e por isso me deixasse de novo, no fim, surtei e adoeci por me sentir sozinha, feia e pequena em um relacionamento que parecia louca por pedir o mínimo (que no caso era andar de mãos dadas na rua, que ele sempre negava falando que não gostava).
Entendo hoje que o relacionamento é feito por duas pessoas e a intenção aqui não é culpar alguém, no entanto hoje com mais maturidade consigo perceber que o meu primeiro relacionamento não conseguia entender as minhas questões, as minhas inseguranças e ciúmes, e a minha necessidade de afeto e de um “status” de namoro, talvez porque nem eu entendesse e não conseguia falar sobre essas questões sem parecer pequena e frágil o que eu odiava, afinal eu precisava ser a mulher forte (Toda uma construção que em outro momento falo).
Com o fracasso dessa primeira experiência, de não conseguir falar o que me incomodava, de ter aceitado abusos e de mesmo sendo “amada” e amar o meu parceiro não conseguir manter o relacionamento, e já adentrando mais em discussões raciais comecei a questionar meu olhar afetivo restrito a homens brancos e me incomodar com ele.Por isso pratiquei o meu olhar mais “romântico” ao homem negro. Comecei a ficar com homens negros e a pensar em um relacionamento afrocentrado em que minhas questões enquanto mulher negra não seriam negligenciadas, no qual eu me fortaleceria enquanto mulher e também politicamente e teria voz, pois amar outro negro mostra uma busca maior por representatividade e realça o fortalecimento da nossa autoestima ( coisa que eu nunca tive).
Com isso na cabeça, deixei a vida rolar e hoje escolhi um dengo negro, que para mim quer dizer muito mais do que amar uma pessoa negra, quer dizer amar e respeitar sua história, suas feridas, seus traumas…. Mas já pensou o quanto isso é difícil??Já pensou em se ver 24 hrs nos olhos de alguém? Ver seus medos, frustrações e traumas? Eu vivo isso, por escolha, porque acredito, ou acreditava, que o amor cura. Mas um relacionamento afrocentrado está longe de ser a salvação para o mal do racismo que nos persegue dia a dia e precisamos parar de romantiza-lo porque isso dificulta nossa forma de amar.
Conheci este amor em abril de 2017, fomos assumir o namoro em janeiro de 2018 pós muitas coisas vividas e eu mais uma vez ter sido a mulher que corre atrás e mendiga amor, para ele só perceber o quanto eu era “valiosa” quando eu estava gostando de outro cara…Viu como a história se repete?Perceberam o tempo que levei para ser vista como uma possibilidade séria de um relacionamento, mesmo por um homem negro? E este fato não é isolado, nós mulheres negras não somos a possibilidade de “algo sério” nem para nossos “iguais”, isso é concreto, tem relatos. Isso é dolorido!
Continuando, fiquei feliz por finalmente depois 10 meses de relação “informal” – com isso quero dizer que fazíamos tudo como namorados, mas nossa família e as “redes sociais” não sabiam-, depois de perceber a preferência dele por uma paquera direcionada a mulheres brancas padrão, ter que ouvir dele que nunca mais ele teria uma relação como a que teve com a ex branca, mesmo assim ele ter me visto como possibilidade de namoro. Agora vocês dariam uma pausa na leitura e me perguntariam porque apesar de tudo isso eu escolhi ele?! Porque acreditei que o amor nos curaria. Acreditei que somos construídos para não nos amarmos e não nos vermos como possibilidade e negar o olhar dele sobre mim não quebraria esse ciclo.
É maravilhoso ter um preto do lado, não precisar estar sempre arrumando o cabelo com medo que ele veja não precisar falar o que te dói quanto você sente o racismo na pele, sentir e perceber que sua fala é fortalecida com a dele, sair de mãos dadas e se sentir ainda mais empoderada porque a negritude dele te fortalece também etc.. No entanto, quando os traumas aparecem o que fazer? Quando você percebe que esse parceiro negro antes de ser negro é homem e reproduz ações machistas, o que fazer?Quando por, saber tudo que fez vocês ficarem juntos e por saber das antigas escolhas brancas do seu parceiro você se tornar ainda mais inseguro e ciumento que antes o que fazer? Quando você sabe o que leva o seu parceiro a ter as atitudes que te magoam e você quer dizer a ele tudo isso e ajuda-lo, mas ainda esta ferida para isso, o que fazer? Não temos o dever de ser psicólogos dos nossos pares, nem de leva-los nas costas, mas como ajudar?Como cuidar realmente dos nossos afetos pretos e ainda nos cuidar? Nesse momento sinto o meu fracasso novamente, porque quando nos víamos envolvidos em discussões (ou quando ainda nos vemos nelas) não é apenas um fato que está nos fazendo discutir, mas sim tudo que nos levou até ele e todas as nossas histórias e feridas individuais que ainda refletem em como agimos e é nesse momento que nos falta à prática de amar e olhar um para o outro com um maior afeto.
Amar uma pessoa preta requer responsabilidades e maturidade muito mais do que um relacionamento inter-racial (meu ponto de vista individual), quanto mais o casal preto for politizado mais aumenta essa responsabilidade… O que fazer então?! Se tratar com especialista talvez seja o caminho, ambos fazerem terapia talvez seja o caminho, eu ainda não descobri o meu caminho e o do meu parceiro, mas sei que estamos à beira de desistir um do outro porque amar uma pessoa preta requer muito mais do que sentir afeto por ela.
A questão que queria pautar no texto era sobre esse fracasso até mesmo no campo afetivo que nos é condicionado atribuído as nossas feridas causadas pelo racismo, essa estrutura que não nos faz objeto de desejos afetivos e de escolha real de relacionamento e só nos estereotipa e tira nossa humanidade. Devemos parar de romantizar nossos afetos pretos, igual os brancos fazem com os deles, porque para nós a um abismo de profundidade na tarefa de sentir amor e a prática de amar que é muito mais complexa do que eu possa explicar aqui. É lindo, fortalecedor e político amar um preto, mas também pode ser cansativo, frustrante e requerer de nós muita maturidade que talvez ainda precise de tempo para entender. A única certeza é que precisamos de coragem para falarmos sobre isso com o mundo, mas principalmente precisamos de coragem para falarmos sobre isso com os nossos parceiros pretos.
Feridas que te rasgam o peito, atravessam meu corpo, me afastam pra longe
Feridas que me rasgam o peito te atravessam o ego e te fazem distante
Feridas que se unem no leito, que bebem o sangue e que expulsam o afeto
Feridas que desconhecemos que se fazem invisíveis e que nos transformam em monstros
Diálogos intermináveis, que contamos as feridas e que não nos ouvimos
Diálogos que nos ferimos para dizer ao outro que o amor não basta para sermos felizes
Diálogos em que você não fala e eu coloco em suas mão um mundo que não é sua responsabilidade
Diálogos em que você se ausenta e eu não me sinto amada e me sinto só, mesmo estando “em pares”
E se eu fosse uma mulher branca, você estaria fazendo algum esforço?
E se eu fosse uma mulher branca, você agiria com tanto descaso?
Feridas minhas … Feridas tuas que se tornam barreiras para nos amarmos
Meu amor, ainda ha tempo de sermos um do outro?
Meu amor, você vai ficar ai parado me vendo indo embora?
Talvez o amor não cure como dizia bell hooks e tantos outros….
Ps: Aqui não falo que as coisas se tornam diferentes e ainda mais complexas quando falamos de relacionamentos não cis e que cada relacionamento preto tem suas particularidades assim como qualquer outro relacionamento. É preciso falarmos de amor para podermos praticar amar!