Os corres e arremessos na periferia
O dia mal começa e se escuta o barulho de correria na frente de casa. Aquele ressoar estalado de chinela batendo no chão. Já estou acostumada com esses corres, antes eu estranhava. Quem teria tanta pressa assim pra correr, nessa rua toda craquelada, sem medo de se estabacar no chão? A princípio eu não entendia. Pensava que eram crianças brincando de pega-pega, ou alguém atrasado para algum compromisso. Mas estava enganada. Agora compreendo.
Começando do começo, a verdade é que morei em poucas casas na minha vida. Algumas de endereço na conta de luz, e outras só de passagem, como “visita que já é de casa”. A residência na Rua da Floresta Verde é uma desse tipo – onde fico sem pagar aluguel, em nome do afeto. Minha casa mesmo, de endereço em carta, fica mais na frente, perto da avenida principal. Mudar o CEP não altera muita coisa, pois os bairros periféricos têm seus padrões. Não digo padrão de planejamento, mas, sim, da falta dele. Da falta de investimento e políticas públicas em uma cidade crescendo de costas para as minorias.
Essa minha morada de visita segue o modelo. Fica numa rua estreita, onde não passa carro, só moto, porque metade é uma escadaria descendo, daquelas de deixar a perna bamba. Os domingos têm cheiro de churrasco feito pelos vizinhos no meio da rua, ao som de brega, com direito a karaokê. Nas noites de terça a sábado, o aroma vem do óleo de fritura de pastel, da barraquinha na esquina. E umas duas vezes por semana, quando chega água, a rua cheira a sabão e amaciante, da mistura que vaza para as valas diretamente dos canos das máquinas de lavar roupa. Aqui moram muitos cidadãos de bem. Diferentes daqueles defendidos em protestos verde-amarelos das áreas nobres.
Frequentar este logradouro me fez conhecer os boys do gol. Não fomos formalmente apresentados, claro. Porém, quem mora aqui conhece. Também não precisei questionar diretamente quem são, fiquei sabendo “de boca”, escutando comentários e conversas. E observando.
Sempre notava eles subindo apressados, com olhares apreensivos, cheios de sussurros, passando na frente do meu portão, segurando um pacote nas mãos. Minutos depois, voltavam correndo, sem olhar para trás, de mãos vazias. Foi aí que entendi que a localização faz a profissão. É porque do lado dessa minha casa está o Complexo Prisional da cidade, construído anos atrás em terreno vazio, mas que hoje é rodeado por moradias, fruto da necessidade básica de se ter um teto sobre a cabeça das pessoas que não tiveram “sorte” de herdar “casas regulares”.
O papel dos boys do gol é jogar “encomendas” por cima do muro e grades do presídio, para seja lá quem as encomendou pegar do outro lado, do lado de dentro. Porque lançar os pacotes não é fácil. Para os menos experientes, é preciso mais de uma tentativa de arremesso. Às vezes, quando erram, os embrulhos vão parar nos quintais das casas próximas. Mas quando eles acertam, é gol. Daí vem o nome deles. Marcou ponto, corre. Porque os homi vão atrás ao som de pólvora explodindo no cano. A vantagem dos boys é conhecer os becos como ninguém, e se esconder é rápido. Só não se escondem da fama, mas também não ligam muito. Já é cotidiano. Normal. Algumas vezes, passei do lado deles e presenciei, aflita, as suas atividades – com aquela técnica de curioso de enxergar sem olhar, sabe? E percebi que nem fazem cerimônia, passam nas carreiras, fazendo zig-zag em quem estiver parado na frente das casas. Até as crianças sabem quem são os boys do gol.
São homens, rapazes, garotos que carregam, jogam e correm. Esse é o trabalho. Dia e noite, noite e dia. Alguns são conhecidos, já peguei comentários dos moradores dizendo “olha aí, tem uma filha novinha e tá metido nisso” ou “esse menino não era assim, ficou magro demais, só o osso, depois que entrou nessa”. As suas histórias são diferentes, com denominador comum. Como entram no ramo? Não sei. E ninguém há de ficar perguntando. Oficialmente, eles não existem, mesmo todo mundo, até as “autoridades”, sabendo da presença.
Querer mudar a situação é difícil. O fato de ser habitual anula a relevância da denúncia. E denunciar não é seguro. Nem necessário. Porque o real problema é mais embaixo, bem mais baixo do que o pé da escadaria. Não adianta querer ditar regras para quem não encontra opções melhores. Para quem já está tão enroscado no sistema. Para consertar, só reestruturando. E isso leva tempo, investimento e disposição.
Assim, continuo pegando o caminho mais longo para evitar trombar com eles. E eles continuam fazendo gol. Enquanto houver distribuição irregular de oportunidades, é gol. Enquanto o desemprego em alta nos forçar a subempregos, é gol. Enquanto o mito da meritocracia for creditado, é gol. A sociedade emplaca muitos gols por baixo das pernas de quem está na base. E o pior é que, muitas vezes, nem dá tempo de correr.
Imagem destacada – Carole68 Pixabay