Por Luana Tolentino para as Blogueiras Negras
Acho que nunca contei essa história a ninguém. Na adolescência, nutri um amor platônico pelo Caco Barcellos. Assim como as minhas amigas eram apaixonadas pelos cantores/dançarinos das boy bands dos anos 1990, eu suspirava pelo jornalista da Globo.
Explico. Em 1999, Caco fora entrevistado pela Regina Casé, que na época apresentava o Muvuca, uma espécie de talk show exibido nas noites de sábado. A certa altura da conversa, Regina perguntou algo sobre as desigualdades existentes no país, não me lembro ao certo o que ela disse. O repórter global respondeu: “o Brasil não muda porque a classe média não quer mudar!”. Aquelas palavras me impactaram de tal maneira que passei alguns dias repetindo mentalmente o que o ele havia dito. Pensei: somente ele teria coragem de dizer aquilo num programa da emissora carioca, e principalmente no horário nobre. Daquele instante em diante, meu interesse pelas questões sociais eclodiu e Caco Barcellos tornou-se o meu ídolo.
Passei a colecionar entrevistas do jornalista gaúcho. Não tive coragem de colocar uma foto dele na parede do meu quarto, pois temia ser incompreendida pela minha mãe. Como explicar a minha paixão repentina por um homem que tinha idade para ser o meu pai?
Um tempo depois, descobri o Caco Barcellos escritor. A leitura de Rota 66 foi inesquecível! Um clássico indispensável para o entendimento da postura violenta e autoritária da polícia militar no Brasil. Em 2003, tão logo foi lançado, li O Abusado, um petardo que narra a história de Márcio VP, traficante do Morro Santa Marta que ficou conhecido em todo o país.
Praticamente quinze anos se passaram desde que o Caco Barcellos concedeu aquela entrevista à Regina Casé. Muita coisa mudou. Apesar de ainda guardar alguns traços daquela garota que sonhava ser inteligente e conhecer o Rio de Janeiro, hoje já sou quase uma balzaquiana. O Brasil nem de longe lembra aquele país dos anos finais da década de 1990, atolado na recessão, subordinado aos interesses econômicos dos Estados Unidos e com indicies elevadíssimos de desemprego, pobreza e miséria. Sobre a nossa classe média, lamentavelmente, não posso dizer o mesmo. Como pude testemunhar no início dessa semana, parece insistir em manter a sua face conservadora e reacionária.
Enquanto aguardava na recepção do consultório dentário, ouvi um dentista esbravejar na sala ao lado: “Hoje em dia tudo é muito fácil! Ninguém quer trabalhar! Tem bolsa para tudo! É bolsa família, bolsa disso, bolsa de não sei mais o quê! E ainda tem essas cotas. Agora qualquer um pode entrar na Universidade! É tudo culpa do PT! Tudo culpa do Lula e da Dilma! Sou contra tudo isso!”
Confesso que a fala do dentista não causou em mim nenhuma indignação. Essa gente não me assusta. Na verdade, senti pena. Percebi nas palavras do “doutor” a mais profunda ignorância e um bocado de inveja e ressentimento, sentimentos que parecem ser inerentes à boa parte da classe média brasileira. A negação de forma virulenta e odiosa das melhorias nas condições de vida da população trazidas por programas como o Bolsa Família e pelo sistema de cotas revela o desejo de manutenção de privilégios, muitos deles conquistados na base da exploração e exclusão social da população pobre. Mas como me disse outro dia a Conceição Lemes, jornalista e amiga querida, contra fatos, não há argumentos.
Já as cotas tem se mostrado um instrumento eficaz na reversão do quadro de injustiça no qual se encontra a população afrodescendente. Estudos mostram que a ação afirmativa é uma medida eficaz para que haja uma maior representatividade de negros nas universidades públicas e consequentemente a elevação da condição socioeconômica desse grupo. Além disso, uma pesquisa recente do IPEA apontou que estudantes cotistas têm rendimento igual ou superior ao dos demais alunos, desmitificando a teoria defendida por muitos de que esse tipo de medida reparatória provocaria a queda da qualidade dos cursos.
Volto ao Caco Barcellos. Para o meu deleite, há dois anos ele ministrou uma palestra aqui em Belo Horizonte. Sempre sensato e coerente, Caco falou para uma plateia lotada sobre a experiência de ter sido taxista, do ótimo Profissão Repórter, de política e dos nossos dramas sociais. E mais uma vez, ele me encantou. Dessa vez com as seguintes palavras: “a maior herança que o meu pai me deixou foram três palavras: vergonha na cara!”
Bem, na minha modesta opinião, além da vontade de mudar, acho que é exatamente isso que falta à classe média da terra brasilis: uma boa dose de vergonha na cara. Enquanto isso não acontece, o Brasil segue mudando. Para melhor! “E quem não é tolo, pode ver”.
Imagem destacada – O popular