Por Samira Menezes para as Blogueiras Negras
Foi na Itália, muito lembrada pelos brasileiros por ser um país racista (como se o Brasil fosse uma excelência em Direitos Humanos), onde aceitei definitivamente e fui muito elogiada pelos meus cabelos crespos, enrolados, o que você quiser chamar. Liso ele nunca foi e, até os meus 20 e poucos anos, isso era motivo de muita frustração e grana jogada fora em escovas (o mesmo que chapinha) e relaxamentos (eufemismo para alisamento).
Na infância, eu não entendia, mas já sentia que tinha algo errado. Se na escola, por algum código social misterioso, as menininhas de cabelos lisos vestidas de princesas não se misturavam às meninas de cabelos crespos vestidas de pijama, na casa da vovó a coisa não tinha mistério nenhum. “Que cabelo feio!” – era isso que minha avó paterna falava enquanto me penteava furiosamente e prendia meus cabelos, que viviam presos. Informações relevantes: minha avó vive e herdei meus cabelos do meu pai.
Enquanto isso, eu assistia às que deveriam ser minhas referências de beleza. Na televisão, a rainha dos baixinhos era loira, alta e com cabelo ralo. No cinema, tão carismática quanto o alienígena que só queria voltar pra casa era a menininha loira de chiquinhas (pelo menos isso eu tinha – chiquinhas). Essa foi então a base para uma adolescência regada a idas semanais ao cabeleireiro – mas sempre com o cuidado de andar com o guarda-chuva na bolsa, para evitar o efeito “poodle” que a chuva provoca em quem teima em fazer escova num país tropical onde reina a miscigenação racial.
Foi preciso ir para o outro lado do mundo, na Nova Zelândia, bem longe dessa ignorância toda, para eu começar a me questionar sobre o que se passava por dentro da minha cabeleira alisada. Cortei curto e parei com as técnicas de alisamento – lá na Nova Zelândia meus cabelos também foram muito elogiados pelo o que são naturalmente. De volta ao Brasil, depois de quase um ano fora, acreditava que não precisaria mais queimar meu couro cabeludo com substâncias químicas fedidas. Mais uma fase superada, né? Não, não. A gota d´água veio aos 21, na sala do RH de um empresa onde eu trabalhava como comissária de voo. Ali, a brilhante chefe-geral das comissárias “sugeriu” que eu fizesse escova porque meu cabelo parecia muito “desarrumado” daquele jeito crespo. Até hoje não sei por que me submeti a isso, mas talvez eu quisesse continuar viajando e ferrando com a minha saúde.
O resto dessa história é mais ou menos simples e bem mais digna: fim da minha carreira na aviação, das químicas, das chapinhas, dos secadores e dos rabicós prendendo meu cabelo cheio e fofinho. E início de uma vida muito mais cacheada, livre e feliz. Hoje só penteio meus cabelos compridos quando os lavo e com pente certo para o seu tipo. Pra finalizar uso um belo de um ativador de cachos.
O lado bom é que além desses cremes que potencializam a beleza e cuidam do cabelo crespo, hoje em dia se discute muito mais esse tema. Pela internet fiquei sabendo da existência do livro infanto-juveni Cabelo Ruim?, da jornalista Neusa Baptista; vi esse vídeo no jornal New York Times que mostra a transição de mulheres negras que decidiram deixar os cabelos crescerem naturalmente; e ainda encontrei o texto Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?, da professora Nilma Lino Gomes, reitora pro tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
Nesse texto, Nilma teoriza aquilo que vivi, mas que eu não poderia entender aos cinco anos: “As meninas negras, durante a infância, são submetidas a verdadeiros rituais de manipulação do cabelo, realizados pela mãe, tia, irmã mais velha ou pelo adulto mais próximo. (…) Mesmo que reconheçamos que a manipulação do cabelo seja uma técnica corporal e um comportamento social presente nas mais diversas culturas, para o negro, e mais especificamente para o negro brasileiro esse processo não se dá sem conflitos. Estes embates podem expressar sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação e, até mesmo, de negação ao pertencimento étnico/racial”. Ela também fala sobre o que acontece na escola, mas acho que já deu pra ter uma ideia do que cabelo crespo num velho país racista pode causar.