Imagem: MarVin / Divulgação
Achegue-se. E obrigada por ler esse texto. Mas cuidado, talvez você não goste do que está prestes a ler. Porque hoje eu decidi falar de mim e da minha relação com muites de vocês. Mas não quero falar para você. Não quero explanar algo complicado de maneira bem simples para você se sentir bem. E não vou tentar, como no passado, dar uma introdução a um assunto interessante (e talvez até mesmo relevante), crendo, ingênua, que você vá tirar um tempinho para pensar sobre o que eu disse. E que, pensando, tire as suas próprias conclusões. Já não temos tempo para isso. Queremos respostas. Não porque realmente as queiramos. Fazer o quê? É o que temos para hoje. E para amanhã. A indústria da informação (desinforme ela mais que informe) é a mais rica atualmente. Se nos anos noventa as guerras eram por petróleo, as de hoje são por qualquer coisa que gere informação. Não importa qual é a guerra, não importa o seu tamanho, importa que falemos delas.
E vamos comprar a guerra da cantora que foi traída. Nos identificar e dar nomes científicos para isso, fazer recorte de raça. E fazer de conta que a dor dela é a nossa dor. Não é. Minha, eu posso dizer com certeza, que essa dor não é. Mas eu sempre fui esquisita. Eu sempre quis ser eu. E onde não me quiseram, talvez por não ter perfil de Rosa Parks, eu simplesmente não permaneci. Não, também nunca quis ser Paquita. Nunca quis ter Barbie, preta, branca ou amarela. Nunca olhei para uma pessoa famosa e pensei “quem pudera ser eu”. Talvez por isso entenda a dor da cantora como somente dela e talvez por isso entenda que a única raiva possível nesse momento é por essa indústria que obriga alguém a se expor dessa maneira, numa tentativa de ter paz.
Eu espero que a cantora tenha alguém para tomar chazinho ou um café, como o faziam as mulheres negras, brancas e indígenas, na cozinha de minha mãe. Vinham, às vezes famintas, às vezes vilipendiadas, contar as suas dores e eram acolhidas pela minha mãe e outras mulheres da vizinhança. Se indignavam, davam conselhos (nem sempre os melhores, pois não é só isso o que importa), ofereciam a ajuda que podiam e sabiam dar, e que era a mesma que, num caso como aquele, gostariam de receber. Mas o mais importante é que estavam lá. Na cozinha. Um lugar onde podiam ser sinceras, podiam estar equivocadas, podiam chorar, dizer o quanto estavam sofrendo, confessar as suas impotências e, ainda assim, serem acolhidas. As redes sociais jamais irão substituir as nossas cozinhas, pois são essas redes as substitutas das salas de estar. Aonde chegamos e nos sentamos bem-vestidas, contamos mentiras sobre as nossas vidas (assim, sem maldade alguma, a gente só não quer desagradar) e fazemos de conta que não nos sentimos desconfortáveis com a empregada servindo café, porque, inexplicavelmente, pensamos em nós mesmas quando a vemos.
Há mais ou menos dez anos, estávamos discutindo as nossas dores em grupos virtuais, como outrora aquelas mulheres, na cozinha de minha mãe. Não aceitávamos o tokenismo, que hoje se recicla, através de um rápido arrastar de imagem (para citar uma amiga minha). Ainda não dávamos lucro. Estávamos falando de nossas dores, potências e impotências. Ainda não entendíamos as nossas pautas e discussões como commodities. Sabíamos que o privado é político sim, mas não para ser exposto sem empatia alguma pelos envolvidos. A superexposição dos conflitos familiares das pessoas negras, negando o direito delas de ter privacidade em nome da questão racial, é um engodo. Não é assim que se faz política. Não é trazendo à memória coletiva uma espécie de sombra, um pessimismo que sempre envolve as relações com e entre pessoas negras. Ignorando que as relações heteronormativas dentro desse sistema patriarcal, independentemente da cor da pele, prevê exatamente isso: relacionamentos extraconjugais para os homens e a exploração dos serviços das mulheres (inclusive sexual e reprodutivo).
As redes sociais agem e ganham muito ativando os nossos afetos. Porque o afeto é político. Não se faz política sem afeto. Cabe a nós decidirmo-nos pelo uso correto desse afeto para fazer a política que realmente vá mudar as nossas vidas. Escrevo e penso, como é quase patético escrever uma frase dessas hoje em dia. Querer mudanças para o coletivo e não para si. Eu avisei que era esquisita.
Use o seu afeto tomando um cafezinho e ouvindo a dor de outra pessoa, divida as suas impotências com ela, conforte-se, reconhecendo-se, e não projetando nela fantasmas que talvez não sejam os seus. E onde não houver uma cozinha e falte o cafezinho, que haja a coragem de falar em plataformas como essa aqui. Continuemos a falar, ainda que seja para o vazio.
Yo me muero como viví.