Imagem: Helida Costa
Sempre que possível procuro produzir um trabalho científico em diálogo com teóricas e teóricos negros. Certamente esta ação é mais centrada na conversa com teóricas femininas pretas/negras. Como escrevo a partir das vivências negras coletivas, das perspectivas estéticas criadas em e por nosso grupo, e, sobretudo, que são inevitavelmente atravessadas pelo racismo estrutural. Busco com frequência a interpretação das mulheres negras sobre o fenômeno da construção social da corporeidade, da beleza e dos processos culturais afro-diaspóricos. Contudo, como já sabemos uma prática que deveria ser vista com naturalidade: trazer o ponto de vista do grupo sobre si, acaba se tornando um desafio no ambiente acadêmico. Por mais que o debate racial esteja mais permeado na sociedade e as práticas de discriminação e racismo cada vez mais combatidas e questionadas. Na academia ainda é desafiante tratar por um ponto de vista daquelas e daqueles que vivem à margem da sociedade, em outras palavras, de um ponto de vista da “outra”, do “outro” historicamente posicionados.
Ainda somos cobradas para usar, referenciar e citar sistematicamente autores e autoras que politicamente foram colocados como “cânones”. Muitas das vezes os estudos produzidos pelos/pelas cânones não estão ou se articulam com nossos signos, símbolos, saberes e modos de produzir conhecimento e noção de pessoa. Estão distantes de uma compreensão de nossa construção de humanidade e, de fato, estão centrados em descrever suas experiências e interpretações particulares sobre o mundo. Neste sentido, introduzir autoras e autores que estão distantes de nossas perspectivas é um processo de esvaziamentos, de escrever o que não se sente, não se mensura, não se pensa e não se compreende. Apoiar nossa escrita em teorias que não percebem a centralidade do corpo em relação com o mundo espiritual e físico. Que adotam terminologias que nos dizem que somos precários em conceber pensamentos críticos e complexos.
Constantemente, somos interrogadas e interrogados nas bancas de finais de cursos, nos pareceres de artigos e nas apresentações de trabalhos em eventos para retirar do bolso um “clássico” (homem branco, europeu, cristão e burguês). No meu caso para dissertar em torno das nossas construções corpóreas e manejos tecnológicos capilares. Pensadoras e pensadores que diversas vezes descrevem a relação com o corpo em um esquema simplório e com pretensões universalistas. Por mais que digam que saímos das interpretações universais, vemos uma repetição de esquemas teóricos, modos de escrever que privilegiam um ponto de vista branco, europeu e estadunidense.
Um exemplo disso é o uso de autores franceses para falar sobre a produção de significados sobre o corpo negro. Em algumas circunstância para abordar regiões do corpo que para pessoas de religiões de matrizes africanas têm um valor imensurável como os pés, na perspectiva do Ocidente, dos olhares franceses sobre o corpo ganham um sentido de “inferioridade” e “impureza” por estarem em contato direto com o chão/solo. Ora, os pés têm lugar relevante nas religiões de matrizes africanas, principalmente no Candomblé. Para estes grupos os pés por estarem em contato direto com o solo e o solo ser morada de nossos ancestrais, é uma parte do corpo também concebida como sagrada. Outra perspectiva é que são os pés que levam os indivíduos aos lugares, a cabeça pode direcionar, mas são os pés que os fazem caminhar. Para nós mulheres, homens, crianças e adolescentes de terreiros os pés não têm nada de “inferiores” ou “impuros”. Pelo contrário, andar descalço num terreiro denota uma complexa gama de percepção, excorporação e modo de estar e se perceber relacionado com o mundo físico e espiritual.
Apesar dessas inúmeras epistemologias e filosofias de mundos que carregamos desde os espaços dos terreiros e das outras organizações e associações quilombistas (NASCIMENTO, 1980) a academia insiste em nos tratar, sempre em posição de riste, como pseudo-teóricas e teóricos. Resistimos a este fenômeno na exigência de introduzir nossas literaturas e pesquisas. Mas o que temos notado é que pouquíssimas vezes a nossa escrita ocupa lugar nas ementas e programas dos cursos de graduação e pós-graduação. Na realidade, “permitem” uma introdução tímida, melindrosa, conquistada na marra, no rompimento com as entraves de uma estrutura que não deseja se desfazer dos vícios coloniais, colonizantes, hegemônicos e racistas.
Na academia brasileira, muitas acadêmicas negras e negros na graduação, pós-graduação ou no papel de docente seguem exigindo, articulando-se para que nossas literaturas, pesquisas, teorias sejam contempladas. Porém, essa ação é tratada como essencialista, radical, raivosa e apressada. Depois de 500 anos ainda têm coragem de nos descreverem com seus recalques (GONZALEZ, 1984). Ouvimos em recorrência as seguintes e repetidas frases da branquitude colonial
“Mas o que esta autora quis dizer é anacrônico”
“Olha este autor é bastante vaidoso heim. A estrutura social é mais complexa do que ele defende!”
“Nossa, eu não conhecia essa autora. Mas também não podemos usá-la para falar de tudo!
“Na minha ementa tem o texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira da Gonzalez. Já fiz uma renovação”
“Eu não preciso colorir a minha ementa para não ser racista e democrático. Eu coloco o que é bom, o que é cânone!”
“Se não entrou como clássica, não é por causa da cor e gênero, mas sim porque seu estudo estava longe de retratar com rigidez teórica a realidade social”
Ouço essas frases e penso sempre “Que cansaço dessas práticas”, ora são de exclusão compulsória, ora de um cinismo que causa máculas em nossa subjetividade e coletividade negra.
Neste universo acadêmico de sintomas e recalques racistas, eles pensam que introduzir um dos textos clássicos de Lélia Gonzalez é uma revolução e uma transformação de vícios antigos. Porém, não conhecem a potência dessa intelectual. Ela não escreveu sobre “tudo”. Mas o que escreveu nos revela as minúcias da sociedade brasileira, bem como os processos de ressignificação do legado africano e indígena. Lélia Gonzalez nos serve para estudar a diáspora africana e a construção da beleza negra na década de 1979 e 1980. Quem não leu seus textos sobre os blocos afro em Salvador e Rio de Janeiro perde a chance de compreender a complexa dinâmica cultural e a potência criativa (resistência) de sobreviver pelo belo, pela alegria e pela exaltação da vida na diáspora.
Mas Lélia Gonzalez é uma autora “recuperada” pela intelectualidade negra muitos vão dizer. Só que apesar de sua grandiosidade acadêmica, ela ainda ocupa um lugar nas ementas de curso a parte, um exceto, uma “pseudo-autorização” para as nossas interpretações. Por toda a sua contribuição ao pensamento antropológico, sociológico e político, ela não deveria ser uma autora que ganha espaço e sim ter seu espaço e uma obrigatoriedade de seus textos em nossos cursos e principalmente nas instituições acadêmicas que trabalhou.
Lélia é um grande exemplo da exclusão compulsória de nossas análises, reflexões e contribuições para a interpretação teórica da realidade.
Além de Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Carolina de Jesus, Sueli Carneiro, Luísa Barros, Matilde Ribeiro, Nilma Lino Gomes e tantas outras autoras negras têm a presença em maior quantidade em textos de pessoas negras ou antirracistas o que, de certa maneira, denuncia o tamanho da distância para temos uma academia mais diversa e democrática.
Pois somente corpos negros adentrando a partir de ações afirmativas sem que nosso pensamento esteja no mesmo lugar de importância que o pensamento europeu, estadunidense e branco é um disparate, uma trava nos olhos, na língua e na mente.
Queremos colocar nossos corpos para descansar no regozijo de nossas leituras com a certeza que acessamos reflexões oriundas de posições e vivências diversas na sociedade. Aliás, descansar é um verbo utópico em uma sociedade racista. Quem é preta, preto e indígena pode descansar se a qualquer momento a violência letal pode nos atravessar?
Por último, gostaria de enfatizar que usar autoras negras não tem somente o sentido de embate e proposta de combate intensivo ao racismo estrutural e epistêmico. Na realidade, a introdução de nossas epistemes, vozes, reflexões enriquece as narrativas produzidas no ambiente acadêmico, bem como possibilita criar outros portais e sentidos para fenômenos muitas vezes descritos num esvaziamento, num apagão histórico e filosófico. Enquanto não contamos com o mesmo grau de relevância dos autores e das autoras brancas, levaremos em nossas bolsas, mochilas e mentes as nossas referências negras e indígenas. Porque sabemos a pertinência delas para tecermos um debate qualificado e digno de nossa história.
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Referências
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Petrópolis: Editora Vozes, 1980
RIOS, Flavia; LIMA, Márcia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.